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Festivais de música: Desafios e expectativas ao criar uma programação
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Festivais de música: Desafios e expectativas ao criar uma programação

Curadores e especialista debatem como se monta o line-up de um festival
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Em 2022, Emicida foi uma das atrações do Festival Elos, realizado no Aterro da Praia de Iracema (Foto: Samuel Setubal/Especial para O Povo)
Foto: Samuel Setubal/Especial para O Povo Em 2022, Emicida foi uma das atrações do Festival Elos, realizado no Aterro da Praia de Iracema

O que motiva você a ir a um festival de música? É a oportunidade de assistir ao vivo ao show daquele artista que você sempre quis conhecer? A chance de ouvir novos estilos musicais e ampliar o leque de cantores e bandas das suas playlist? Ou a experiência catártica de vibrar coletivamente cantando a plenos pulmões aquele refrão chiclete?

Seja qual for sua resposta, um ponto é consenso: a satisfação do público é o que norteia as decisões de quem realiza esses grandes eventos. Pensado para grandes públicos, os festivais precisam equilibrar pontos como curadoria, estrutura, organização, entre tantas outras variáveis.

Neste domingo o Vida&Arte convida curadores, especialistas e artistas para falarem um pouco sobre a experiência de criar um grande evento e responder a principal pergunta: O que é fundamental na hora de montar o line-up de um festival?

O carioca Zé Ricardo é diretor artístico de grandes festivais pelo Brasil, a exemplo do Rock In Rio, do The Town e do Festival de Verão de Salvador – este em fase final de organização da próxima edição, em janeiro de 2024.

O produtor conta que uma das principais dificuldades em estar à frente de grandes eventos é montar um line-up coeso, mas que atenda a diferentes públicos, além de buscar preservar uma identidade que mostre um panorama amplo da música brasileira.

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“O line-up de um evento grande como Festival de Verão tem que ser o espelho da nossa sociedade. Então, eu acho que todo mundo precisa se ver nele. Além disso, a diversidade musical é muito importante e precisa também que esse line-up se comunique globalmente com o Brasil, não só com um estilo musical”, reflete o produtor.

O anúncio da lista dos artistas de um festival é um dos momentos mais esperados pelo público, que, em muitos casos, acaba não se satisfazendo com o que é apresentado. Entre as críticas principais, a recorrência de alguns nomes que acabam aparecendo em muitas curadorias.

Zé Ricardo rebate, porém, pontuando que a curadoria de um grande evento equilibra o estudo de demanda do público com a disponibilidade de agenda dos artistas, além, claro, das inúmeras questões contratuais num contexto que envolve tantos profissionais diferentes.

“Todo mundo que possui uma playlist no Spotify acha que pode fazer curadoria de festival. E fazer curadoria de festival tem técnica, experiência, necessidade e ninguém nunca fica satisfeito com o que é apresentado. É difícil manter-se isento, por isso, tento no meu trabalho ouvir, mas saber que quem está fazendo uma proposta artística sou eu”, exclama.

O diretor artístico ainda fala sobre como, nas redes sociais, muitos fãs confundem o conceito de curadoria de festival, ao associarem que os artistas com mais audiência devem estar presentes em todo line-up de show – considerando apenas a popularidade recente.

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“Eu acho que hoje também as redes sociais confundem muito as curadorias de festivais. Não adianta em um evento grande você anunciar ‘Paulo’ se vai ter um tipo de público querendo ‘Pedro’ e vice-versa. Ninguém nunca está satisfeito e quando veem que tal artista não está presente vão nos comentários para externar raiva, mas quem está gostando já comprou o ingresso, isso é o que importa”, pontua.

“A curadoria de um festival é, acima de tudo, um processo de disputa dos seus”, conceitua o cearense Paulo Victor Feitosa, diretor artístico e idealizador de festivais como Elos e Acordes do Amanhã em Fortaleza, Rio de Janeiros e outras cidades brasileiras. Para ele, a programação nos festivais deve olhar para sua realidade local, regional e a reflexão do que tudo isso representa no cenário nacional.

Paulo aponta que, no nordeste, as dificuldades são outras se comparado ao eixo Sul e Sudeste do País. Trazer grandes atrações para festivais é um problema, quando os custos envolvendo a vinda de artista “quase triplicam” o valor de cachê. As despesas envolvendo passagem, hospedagem, transporte de pessoas e estrutura, alimentação e segurança são muito altas.

Os custos para trazer grandes atrações de fora da região do Nordeste triplicam se comparado com a logística de fazer festivais no Sudeste. Principalmente quando tratamos de artistas nacionais de grande audiência, que estão localizados na sua grande maioria no Rio e em São Paulo”, afirma o cearense.

Essa dificuldade financeira se agrava diante da escassez de incentivos públicos e privados para a realização desses grandes eventos. Para driblar esses empecilhos, os diretores de festivais no nordeste criaram uma rede colaborativa para ajudar na realização de shows. O objetivo é que, juntos, eles consigam montar uma lista de atrações com artistas de fora da região.

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“Existe essa rede colaborativa mesmo, quase solidária e estratégica de alguns festivais do Nordeste para que a gente consiga quebrar essa bolha em relação ao Sul e Sudeste do País. Com acordo de calendários e perfis de programação para tentar viabilizar e baratear essa questão da logística. Assim conseguimos, de fato, ter uma programação diversa de outros estados fora do Nordeste”, conta.

O produtor ainda destaca que atualmente os line-up de grandes festivais se baseiam em números de plataformas musicais, achando que isso automaticamente vai refletir na plateia do evento.

“Há uma defasagem, uma decrescência dos festivais históricos e principalmente dos festivais públicos no Brasil. E essa padronagem é focada única e exclusivamente na audiência, quando sabemos que não funciona assim. Mas isso não é uma coisa de agora, se pegarmos o histórico dos últimos vinte anos de festivais, eles funcionam na mesma lógica”, relata.

No último dia 24, foi anunciada a programação completa do Réveillon de Fortaleza 2024, que neste ano contará com três dias de duração e 17 atrações musicais nacionais, no Aterro da Praia de Iracema. E o que chamou atenção do público foi a falta de artistas locais menos conhecidos e a repetição de atrações que já passaram pela Capital em outras celebrações da data como Xand Avião, Alok, Wesley Safadão e Taty Girl.

Em nota, a Prefeitura de Fortaleza conta que o line-up do festival foi pensado para atender as expectativas da maior parte do público fortalezense. “A programação artística do Réveillon de Fortaleza foi escolhida buscando a máxima diversidade de gêneros musicais para atender as expectativas da maior parte do público fortalezense, mas também de visitantes de outras partes do Ceará, do Brasil e do mundo”.

Paulo Victor destaca que tanto em festivais públicos e privados, os organizadores querem contratar artistas com audiência para mobilizar um grande público, sem levar em consideração o contexto cultural e estético que será apresentado.

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“O que importa é os dez milhões de ouvintes no Spotify e acham que isso vai refletir na plateia automaticamente e não é assim que funciona. Sabemos que a formação de plateia passa por uma série de contextos, inclusive que não são ligados necessariamente na audiência”, completa o curador sobre os line-up de festivais.

Ludmilla apresentou show Numanice no Marina Park Hotel, em Fortaleza
Ludmilla apresentou show Numanice no Marina Park Hotel, em Fortaleza

Do Samba ao Trap

Apesar da maior visibilidade dos eventos musicais brasileiros nos últimos anos, alguns estilos e gêneros musicais seguem preteridos na maior parte das programações. O samba, por exemplo, é um ritmo que costuma figurar apenas em festivais próprios para samba e pagode.

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Cantores como Thiaguinho, Ludmilla e Xande de Pilares (que lançou recentemente elogiado disco com canções de Caetano Veloso) fazem sucessos com os seus próprios shows. Numanice, da Ludmilla, e Tardezinha, do Thiaguinho, estão entre as festas mais rentáveis do País. Mas por que o ritmo ainda não é tão frequente nos eventos multiculturais?

Porque o samba recebe todo mundo na casa dele e quando tem festa o samba fica do lado de fora?”, questiona a cantora Teresa Cristina, em entrevista ao Vida&Arte. Para a cantora, o samba é um ritmo “democrático” que recebe canções de diferentes ritmos – “Legião Urbana, U2, Elis Regina” – mas que não é bem recebido em festas de outros ritmos.

A ausência de mulheres pretas também é uma questão para a cantora, que aponta a falta de oportunidades para se descobrir novos talentos e mostrar para o público brasileiro a diversidade que existe no Brasil.

“Não podemos ter grandes encontros musicais onde a mulher preta esteja de fora, eu não estou sozinha. Existem várias outras cantoras com o meu perfil, minha cara, tipo de cabelo, nariz, querendo um espaço pra chegar e falar, ‘olha eu existo’ “, declara.

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“Eu estive no mesmo palco que um gestor de festival e tive que brincar para poder mostrar meu trabalho: ‘Oi, eu estou aqui’. Fazer vários festivais e chamar sempre os mesmos artistas é feio. Porque é como se você estivesse querendo dizer para aquele grande público que assiste o festival que só existe aquela pessoa fazendo aquele trabalho e isso é mentira”, pondera.

Para artistas iniciantes em ritmos ainda não tão presentes nos grandes eventos, a situação é ainda mais delicada. O rapper Gutto, conhecido como 6utto nas plataformas digitais, é da periferia de Fortaleza e afirma que o caminho é muito mais difícil sem o apoio necessário para a divulgação do trabalho.

“Eu comecei a gravar no quarto, tinha vontade de fazer música e queria lançar para que as pessoas ouvissem. E não entendia que eu precisava de uma produtora que me distribuísse e que colocasse o dinheiro na minha música para ela chegar em mais pessoas. Eu achei que eu ia lançar e as pessoas iam ouvir e ‘tal hora’ eu ia acontecer. Mas a gente percebe que não é assim que funciona”, avalia.

Sobre a oportunidade de se apresentar em festivais, o rapper citou o Réveillon de Fortaleza e a falta de representantes locais com pouca visibilidade. “Ninguém precisa falar o que ficou óbvio com a lista de atrações para o réveillon desse ano. Se você sair nas ruas aqui em Fortaleza vai enxergar que existem grandes artistas fazendo música boa, arte boa. Temos uma galera em ascensão que eles não enxergam, mas é muito sobre dinheiro, ainda não é sobre cultura”, declara o rapper sobre o line-up da festa de ano novo na Capital.

Cearense Mateus Fazeno Rock foi um dos artistas apoiados financeiramente pelo Festival Elos
Cearense Mateus Fazeno Rock foi um dos artistas apoiados financeiramente pelo Festival Elos

Festival Elos: nova edição

Presente no calendário de Fortaleza desde 2018, o Festival Elos já conquistou público e espaço na agenda cultural da Capital, mas esse ano encontra dificuldades orçamentárias.

A verba disponível para a realização do evento é de 40% a menos da recebida no ano passado, que já era 20% a menos comparada a 2021, de acordo com Paulo Victor Feitosa, idealizador do festival.

O evento, que costumava acontecer nas areias da Praia de Iracema, este ano vai ocorrer no Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura, mas ainda não teve datas e o seu line-up divulgados. Em anos anteriores, o evento recebeu grandes nomes, a exemplo de Elza Soares, Gal Costa e Chico César.

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“A Prefeitura de Fortaleza tem criado algumas estruturas no Aterro da Praia de Iracema que inviabilizam um festival como nosso de baixo orçamento e de grande interesse público. Então estamos indo para o Dragão do Mar para ser do tamanho que a gente pode ser, atingindo o público que a gente quer atingir e ocupar esses espaços públicos”, declara o organizador do festival.

A pluralidade é uma das coisas que o festival costuma buscar em seu line-up. “O objetivo do Elos é criar uma narrativa que dialoga com os mais diversos públicos da Cidade, mas acima de tudo trazer visibilidade e um holofote para os artistas que produzem no Ceará” declara Paulo Victor sobre a importância do festival na capital.

Comparando o festival Elos com grandes festivais públicos, Paulo Victor traça a diferença entre eles.

“Um festival, por exemplo, como Elos, não olhamos só para o artista que tem audiência x, mas sim como que esse festival pode ser estruturado para uma cadeia produtiva principalmente da música. Onde propõe-se equilibrar os artistas do território, cidade, estado, dando a eles a mesma visibilidade, projeção que se é dada para artistas de grande porte que trazem indicadores de audiência”, declara.

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Elos também oferece, a cada edição, um apoio para três artistas do Ceará fazerem um co-produção junto com o festival e montarem um show para um grande formato de apresentação.

“Financiamos o pagamento de um cachê para os artistas com foco na produção de show. Já fizemos isso com o Mateus Fazeno Rock e Di Ferreira. O festival os enxerga como uma plataforma de projeção da música cearense, trazendo eles para um holofote de igual para igual com os artistas nacionais, ditos de grande audiência, que também frequentam o line-up do nosso evento”, explica Paulo Victor.

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