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O botequim de uma mesa só
Foto de Romeu Duarte
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Professor do Curso de Arquitetura e Urbanismo da UFC, é especialista nas áreas de História da Arquitetura e do Urbanismo, Teoria de Arquitetura e Urbanismo, Projeto de Arquitetura e Urbanismo e Patrimônio Cultural Edificado. Escreve para o Vida & Arte desde 2012.

O botequim de uma mesa só

À minha turma boa

Há muito faço parte de uma turma imensa, uma verdadeira confraria, que se reúne todo santo dia, à hora do almoço e/ou no fim da tarde, para passar a vida a limpo e atualizar o papo. Claro que essa reconfortante reunião se dá sempre num botequim, na companhia das bebidas e dos tira-gostos preferidos. O pensamento voa e me vejo com meus amigos e amigas biriteiros sentados a uma mesa que se estende na paisagem como um quadro de Marc Chagall. Uma mesa só, com pessoas reunidas pelo afeto, brindando ao fato de estarem vivas. "Delirium tremens?!", perguntarão alguns, pouco afeitos às boas coisas da mundanidade. "Não, meus caros", responderei aos fariseus, "apenas a busca insaciável do prazer", como diria o grande Jaguar, que ainda está por aí.

É verdade que a pandemia afugentou essa tropa boa dos bares com seu bafo de besta fera. Quanta gente se mudou para o andar de cima ou para o porão e não pode mais participar desses animados convescotes, deixando saudades ou alívios. Por outro lado, no período do (des)governo do inominável, ir a um boteco para beber uma simples cerveja transformou-se num ato de risco, numa operação diplomática, em que as palavras eram cuidadosamente medidas para não ferir suscetibilidades, mesmo estas proferindo fake news a todo momento e ostentando um comportamento de manada. Duros tempos esses. Não que os entreveros político-ideológicos tenham sumido de todo, mas bar e democracia é uma combinação perfeita. Ah, como o tempo passa depressa nestes lugares.

E a mesa extensa e única, solta na cidade, teve início no Bar do Aírton, uma ruína também conhecida por Chernobyl, por mim frequentada por longos 30 anos. Fiz especialização, mestrado e doutorado em boêmia lá. Não mais existe no plano material, somente no intangível, quando nos reunimos à volta do Véi Aírton. Mudamo-nos de mala e cuia para o Bar do Helano, onde o proprietário nos recebeu alegremente fantasiado de Waldick Soriano, Roberto Carlos e Cauby Peixoto. Daí fomos às domingueiras do Raimundo do Queijo, no Centro, um bom pedaço do sertão em Fortaleza, onde todo cego é corno e todo corno é cego. A mesa tem se demorado na Embaixada da Cachaça, onde a segunda-feira é sem leite. Aliás, amigos nunca os fiz bebendo leite ou chá, não é, Zeca?

E por falar na arte de Cartola e Paulinho da Viola, a mesa se esticou toda para caber no Serpentina, autêntico reduto do samba por estas bandas. Dedos ferindo cordas, mãos batendo tambores, bocas soprando metais você também vê no Giz, só que dando vida ao choro. A mesa se engalana e abraça a realeza quando dá uma meia-trava no Bar Vitória, o mais vetusto da cidade, e no Bar do Seu Nonato, o mais antigo da heráldica Gentilândia, aqui virando balcão. O caçulinha, onde a mesa acabou de chegar, é o Bar do Vicente, singelo estabelecimento encravado no Joaquim Távora, onde o futebol adocica a pinga diária. Mesa grande e farta esta, construída com as madeiras do bem querer e da amizade. Que se encompride sempre, ajuntando gente boa, até a saideira...

 

Foto do Romeu Duarte

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