Levar equipamentos de um cenário a outro em um carrinho de mão, dirigir uma criançada cheia de energia e encontrar estratégias para atores mirins que mudaram de voz enquanto cresciam foram alguns dos desafios que se fizerem presentes ao longo da produção do filme cearense independente “Os Maluvidos” (2022).
O longa-metragem compõe a programação do 33º Cine Ceará - Festival Ibero-americano de Cinema e será exibido dentro das Mostras Sociais - “O Primeiro Filme A Gente Nunca Esquece”, no Cineteatro São Luiz, no dia 27. A obra se soma aos mais de 80 filmes que integram o evento, em seleção que inclui ainda obras como “Jaci”, de Bruno La Loba – que está na lista de curta-metragens da Mostra Olhar no Ceará – e “Sou amor”, único filme nacional que compete na Mostra Ibero-americana de Longa-metragem, dirigido por André Amparo e Cris Azzi.
Apesar de estarem em momentos distintos do festival, os três compartilham um ponto em comum: um roteiro repleto de desafios para quem trabalha com audiovisual de forma independente no Brasil. Por isso, conseguir finalizar e levar uma obra para o 33º Cine Ceará é considerado um final feliz.
Para tal feito, Gislandia Barros e Josenildo Nascimento, diretores e roteiristas de “Os Maluvidos”, contaram com o auxílio da comunidade do Bom Jardim para realizar a trama. Idealizadores da produtora que leva o mesmo nome do bairro, os dois já haviam lançado um longa chamado “Botija”, no Cineteatro São Luiz, em 2015.
O enredo acompanha Malu e sua turma de amigos, que adoram aprontar no Bom Jardim. Um dia, a garota vê a amiga Anastácia sendo levada pelo vizinho Edgar, que a protagonista suspeita ser algum tipo de monstro. Ela, então, reúne a turma para resgatarem Anastácia.
Além das crianças que moram no entorno, que se prontificaram a fazer parte da obra, o colégio Vencer serviu de set para algumas cenas do longa infantil, incluindo as musicais. “Os pais ajudaram no que podiam. O pai de uma das crianças ajudou com seu carro em alguns dias de gravação levando a equipe e equipamentos de filmagem dentro”, conta Gislandia.
A casa de uma das atrizes mirins também foi usada como locação para gravar as cenas, a avó de outra menina do elenco confeccionou o figurino da personagem da neta. “Outras pessoas da comunidade ajudaram no figurino, emprestando farda para a roupa do policial e pintando nomes para colocar nela. Emprestaram até uma roupa do Samu para a cena final e outros acessórios para o filme”, relata a realizadora.
Para as coreografias das cenas musicais, o filme teve auxílio da Escola de Ballet Wirtz, outro vizinho emprestou a Kombi para que as crianças pudessem gravar a música principal do filme e um dos moradores que é baixista também ajudou na trilha sonora do longa. Ações que reafirmam que uma obra audiovisual se constrói com muitas mãos envolvidas.
A ideia para a produção infantil surgiu a partir da demanda das crianças do Bom Jardim que tiveram a oportunidade de assistir “Botija”. “Algumas crianças assistiram e, ao ver que tinha um personagem infantil, nos procuraram dizendo que queriam fazer o filme também. Aí eu disse para o Josenildo: ‘Vamos fazer um filme com crianças’, revela Gislandia, que ficou responsável pela captação das imagens, enquanto Josenildo escreveu o enredo e dirigiu a obra.
“Jaci” por sua vez surgiu a partir de um sonho que a realizadora e roteirista Bruno Lobo La Loba teve ainda durante a pandemia de Covid-19. Certo dia, a artista viu um casarão desabar sobre si. “Essa visão foi muito nítida e carregada de simbologias. Trabalhando com teatro, eu estava sofrendo sem ter contato, a partilha, sem público, sem cachê, sem conseguir pagar as contas. Então, voltei para a casa dos meus pais e comecei a notar os presságios de uma ruína, na casa onde cresci”, expõe.
De acordo com a sinopse, “uma artista solitária tenta concluir uma maquete, enquanto enfrenta os problemas de estrutura de sua própria casa. Em uma madrugada tensa, Jaci é atormentada pela respiração de uma rachadura. À medida que a proporção entre a realidade e a representação começa a se desmoronar, ela é levada em uma jornada de reconstrução interior”.
O processo de criação foi intenso, já que Bruno teve apenas um mês para construir o enredo, na Vila no Laboratório de Criação de Ficção. “Eu e Celina Ximenes focamos nos elementos sonoros, na ambiência de Jaci e no silêncio que permeia sua história. A minha escrita se misturava ao movimento, uma investigação interna enquanto andava pela sala, cruzava para a cozinha e adentrava no quarto, sentindo o tempo da ação. Criamos uma abordagem prática para a equipe de roteiro, analisando e adaptando conforme aprendíamos a ouvir o que cada cena pedia”, descreve La Loba.
“Jaci foi um projeto desafiador, marcado por riscos operacionais, um prazo curto e um orçamento zero. Mas tudo foi confluindo”, explica Bruno. Adaptações precisavam ser feitas para que Bruno conseguisse realizar a conexão entre técnicas teatrais, artes plásticas e cinema. As filmagens foram feitas na casa do também estudante de Cinema e Audiovisual da Unifor. “Eu entendi que o lugar mais viável para testar e filmar era a minha própria casa. Então, inventei a loucura de fazer uma mudança enquanto a produção se aproximava”, conta.
Outro percalço enfrentado durante a produção foi garantir a presença da protagonista do curta. Já que a aluna da Escola Pública de Audiovisual da Vila das Artes escolheu Yasmim Salvador para interpretar a personagem. “Ela está morando em Preá - Jijoca. Tivemos que montar uma logística bem pontual das vindas dela, para pré-produção, ensaios, testes e as três diárias”, explica. Segundo Bruno, “assumir estes riscos e ultrapassar os obstáculos só foi possível graças à determinação de toda equipe, a confiança no processo, e as parcerias que fizemos”. Para continuar bancando as idas e vindas da atriz, houve investimento próprio e um pix colaborativo. A obra levou três meses para ser produzida.
“Sou amor” foi mais um filme construído a muitas mãos. Desenvolvido a partir da série que leva o mesmo nome exibida em 2018, o longa acompanha um jovem de Belo Horizonte (MG) descobrindo a sua sexualidade e gênero. Por ser dirigida por dois homens cis, André Amparo e Cris Azzi, a trama teve consultoria para conseguir abordar temas tão importantes de forma adequada. “Tivemos esse cuidado por tratar de um assunto que está fora do nosso lugar de fala, no processo do longa no que chamamos de conselho construtivo de roteiro, com a participação de atores da série que são da comunidade LGBTQIAP+, pessoas queer. Então assim, foi um roteiro construído a várias mãos”, elucida Amparo.
Para ele, é uma vitória que a trama esteja na mostra competitiva, pois para “entrar em festival tem que ter distribuidor, indicação e nós não tivemos tempo para isso porque cada um estava cuidando de suas demandas. O filme foi selecionado pelo perfil, sem indicação nem nada”, afirma André.
Uma das principais dificuldades para a realização da obra, de acordo com o diretor, foi cortar partes que havia gostado. “Teve momentos que tivemos que parar e dar um tempo para o filme respirar um pouco, cortar caminhos, entender que a ideia é dinâmica, deixar ela acontecer, por isso que demora para acontecer, porque temos que experimentar caminhos, muita coisa que gostamos não foi o filme porque não cabia”, explica.
Programação Mostra Competitiva Ibero-americana de Longa-metragem
- Agora a luz cai vertical (Espanha-Alemanha-Itália-Holanda)
Direção: Efthymia Zymvragaki
- Alemanha (Argentina-Espanha)
Direção: María Zanetti
- Céu aberto (Peru-França)
Direção: Felipe Esparza
- O castigo (Chile)
Direção: Matías Bize
- A mulher selvagem (Cuba)
Direção: Alan González
- Sou Amor (Brasil)
Direção: André Amparo e Cris Azzi
Programação deste sábado, 25
- Barra Nova (Diego Maia. Animação. 12’. Ceará. 2022)
- Camurupim (Allan Matheus. Experimental. 12’. Ceará. 2022)
- Encruzilhadas do som (Edigar Martins. Documentário. 18’. Ceará. 2023)
- Todo mundo tem um anjo (Neil Armstrong Rezende. Animação. 10’. Ceará. 2023)
Onde: Cinema do Dragão - Sala 2 (rua Dragão do Mar, 81 - Praia de Iracema)
Classificação indicativa: Livre
- Os maluvidos (Josenildo Nascimento e Gislandia Barros. Ficção. 73’. Ceará. 2022)
Onde: Cinema do Dragão - Sala 2 (rua Dragão do Mar, 81 - Praia de Iracema)
Classificação indicativa: Livre
- Jeca Tatu (Milton Amaral. Ficção. 95’. Brasil. 1959)
Onde: Praça do Ferreira
Classificação indicativa: Livre
- Homenagens a Bete Jaguaribe e George Moura
- Mostra A Cinemateca é Brasileira: Ilha das Flores (Jorge Furtado. Documentário. 13’. Brasil. 1989)
- Mostra Competitiva Ibero-americana de Longa-metragem: A mulher selvagem (Alan González. Ficção. 93’. Cuba. 2023)
Onde: Cineteatro São Luiz (rua Major Facundo, 500 - Centro)
Classificação indicativa: 12 anos