“Costumo dizer que sou um curador de imagens. Passo o dia na busca de imagens que me marcam, pois sei que em algum momento vou encaixá-las na minha colagem pré-pintura e eternizá-las em alguma composição que farei”, reflete Helder Carlos Xavier de Araújo ou, como é conhecido artisticamente, Blecaute.
Cria do bairro Passaré, o jovem de 22 anos, que tem como referência o pintor italiano Caravaggio (1571-1610), é estudante de Filosofia da Universidade Estadual do Ceará (Uece). Blecaute conta que sentar em frente a uma tela é o momento que se sente vivo em seu habitat natural. A imersão experimentada nesse período é importante para sua arte se concretizar.
“Cada pincelada tem um papel fundamental no processo, assim como o melhor rapper é aquele que não desperdiça nenhuma linha, acredito que o pintor não pode desperdiçar nenhuma pincelada e tela”, declara.
O nome artístico possui alguns significados para Blecaute e funciona como um ato político contra o racismo. “Significa tornar o mercado da arte possível para pessoas negras e periféricas, levando a escuridão a um local que antes só tinha os dito ‘iluminados’, levar um blecaute até locais que foram criados por nós, mas dominados pela branquitude”,expressa.
O contato com a imagem começou ainda criança assistindo ao anime “Dragon Ball” e tentando desenhá-lo do seu jeito, mas foi somente em 2019 que, de fato, apostou em seu talento e começou a investir na arte plástica.
“Baixei um aplicativo de ilustração para celulares e logo vi que conseguia fazer algo que me agradava esteticamente e que eu conseguia colocar minha visão de mundo, tanto minhas vivências de coisas que vinha estudando como críticas acumulandas ao academicismo”, relata.
O rap sempre esteve presente em sua vida e desde cedo soube identificar que as letras das canções se assemelhavam com sua realidade vivida na periferia de Fortaleza. Ao embarcar no mudo das artes plásticas percebeu a falta de representatividade e que seria sua própria referência.
“Eu não tinha referências de artistas negros que narravam o que eu estava passando, não por falta de artistas narrando suas realidades que se assemelhassem às minhas, mas porque suas artes não chegavam até mim de forma alguma, assim sendo, seria eu minha própria referência” reflete.
Em suas pinturas o artista busca transmitir para o público aquilo que estava sentindo no começo da criação da tela e durante a produção, que se eterniza em símbolos ou mudanças do plano original da obra.
“Eu falo sobre minha subjetividade enquanto um jovem homem negro e periférico tentando não apenas sobreviver em Fortaleza, mas viver dignamente através do meu trabalho. Falo sobre as esquinas que normalmente costumam evitar, sobre possibilidades negadas e novas oportunidades construídas por nós mesmos” detalha.
Em setembro deste ano, Blecaute teve a oportunidade de expor suas telas no Museu de Arte do Rio de Janeiro na exposição “FUNK: Um grito de ousadia e liberdade”. Foram eles, "Filhos de Um Deus Que Dança", "Festa de Preto é Pra Se Libertar" e "Only Colored".
“Como meu trabalho é realizado em diferentes linguagens dentro da ilustração/pintura. Os três trabalhos que foram escolhidos foram colagens-ilustrações onde fazem parte do universo 'Festa de Preto' e são artes que fogem um pouco do que costumo trabalhar. Mas foram muito bem recebidos e muita gente conheceu minhas pinturas a partir dessa exposição e agora acompanham a amplitude dele”, conta o pintor.
Em média, o estudante de filosofia já possui, entre trabalhos digitais e telas em acrílica, 350 obras, além das criações nas linguagens das animações e vídeos. Para ele, sua obra de mais significado atualmente é “Anastácia livre pra caralho”, tela que representa um sentimento de liberdade, riqueza e abundância.
Ela foi desenhada com dentes e acessórios que reluzem ouro, cabelo e sobrancelhas loiro “pivete”, com típico risquinho das favelas da Capital.
“Seu sorriso que outrora foi roubado pelas mordaças e escravização agora retorna a abrir em liberdade, com joias refletindo uma rememoração em nome de um futuro-presente ancestral”, descreve o pintor sobre sua obra.
Caso de Racismo
No início da pandemia da covid-19, o Museu de Arte de São Paulo (MASP) realizou um projeto nas redes sociais de, a cada semana, lançar uma obra do seu acervo para os artistas do Brasil enviarem releituras. "A partir do meu sangue… Arte", de Blecaute, acabou sendo uma das escolhidas.
"Nesse momento de alegria, um dos primeiros comentários foi o de uma mulher branca afirmando que todas as artes selecionadas estavam lindas, menos a minha, porque, segundo ela, eu era 'muito mal encarado para ser Cristo'", lembra o jovem sobre a obra que envolvia mote sacro.
Ele, então, reagiu: “Eu a agradeci rindo, porque nesse simples ato ela demonstrou na prática sobre o que é meu trabalho e como ele pode incomodar racista. A sua frase se tornou o nome do meu projeto de exposição que venho trabalhando, “Muito Mal Encarado Para Ser Cristo”. Tomei para mim ao ressignificar tal frase”, declara o artista cearense.
Sonhos a serem realizados
Além de expor seus trabalhos em grandes museus e pinacotecas pelo Brasil e no mundo, Blecaute, que atualmente trabalha como auxiliar de pintor e de lambe-lambe, sonha em ser livre fazer sua arte em tempo integral, possuindo materiais e dinheiro para concretizar seus planos e ideias.
Mas reconhece que as dificuldades pelas quais passou ao longo da vida limitaram seus pensamentos. “Meus sonhos não são tão amplos como eu gostaria, traumas não me permitiram arquitetar um futuro distante, mas espero que daqui a cinco anos eu não esteja passando sufoco todo mês para pagar minhas contas”, expõe.
“Sonho em ser valorizado, compreendido e com o dia que notarão a grandiosidade do meu trabalho. Que arte seja possível para pessoas como eu e que vieram de onde eu vim, de discursos potentes, possam ser livres para narrar suas realidades sem que sofram perseguição. E que ela seja uma saída real do caminho do crime”, finaliza o artista plástico cearense.
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