Felipe Nunes e Thomas Traumann cogitavam fazer uma autópsia da eleição de 2022. O primeiro, cientista político e fundador do Instituto Quaest, o segundo, jornalista e ex-chefe da Secretaria de Comunicação do governo Dilma Rousseff. Os ataques de 8 de janeiro fizeram a dupla reajustar o plano. O que era para ser um livro sobre a disputa eleitoral virou um retrato do que foi o confronto, mas também do Brasil que saiu dele.
Para os dois, neste 2023 vivemos em Lulanaro, um país onde a polarização ultrapassou a arena eleitoral. Invadiu o almoço em família, as salas de aulas, as conversas de bar e até as escolhas de compras.
"Biografia do Abismo", como a polarização divide famílias, desafia empresas e compromete o futuro do Brasil tem 240 páginas e uma coleção de dados e gráficos sobre as preferências, ódios e amores de eleitor antes, durante e depois da disputa presidencial.
"Quando veio o 8 de janeiro estava claro que a eleição não terminou", explica Traumann. A principal fonte do livro é o banco de dados da Quaest com 98,8 mil entrevistas realizadas em 27 edições ao longo de 2021 e 2022, além do material coletado em 150 grupos de discussão com eleitores durante a campanha. Ao acervo foram acrescidas pesquisas mais recentes, realizadas neste ano.
O livro pega emprestada a figura cunhada pelo economista Edmar Bacha na década de 1970. Para falar do Brasil marcado pela desigualdade social e também produtor de riquezas, ele criou o termo Belíndia, a nação que ora se parecia com a pobreza encontrada à época na Índia, ora gerava riqueza e renda compatíveis com a Bélgica. Assim yambém é Lulanaro, o país ainda desigual e, agora, rachado entre os apoiadores de Lula e Bolsonaro.
O texto propõe ir além da polarização que também tem marcado o mundo político lá fora. Para isso, pegam emprestado o conceito de calcificação, descrito por pesquisadores norte-americanos que analisaram os efeitos duradouros da disputa presidencial nos Estados Unidos pós-Donald Trump.
Calcificação na política quer dizer que "as pessoas ficam mais firmes no lugar e é mais difícil se afastarem de suas predisposições". "A calcificação significa menos disposição de desertar do seu grupo, romper com seu candidato a presidente ou até votar no partido oposto. Há, portanto, menos chances de eventos novos e até dramáticos mudarem as escolhas das pessoas nas urnas", escrevem. A polarização é tamanha que as divergências se consolidam e tornam difícil o eleitor mudar de opinião e de voto.
O livro de Felipe Nunes e Thomas Traumann cita como exemplo da polarização o registro de que havia intolerância em relação a aceitar em sua família um apoiador do candidato adversário. Diante da pergunta "você aceitaria ver sua filha casada com um apoiador do adversário?", veio a resposta: em junho de 2022, um em cada três entrevistados disse que se sentiria infeliz ou muito infeliz se isso acontecesse. Na época 43% dos lulistas deram essa resposta; entre os bolsonaristas o porcentual foi menor, 28%.
Há ainda um grande contingente, 54%, que relatou conhecer alguém que rompeu amizades ou laços de família por divergência eleitoral. Em junho, o ressentimento ainda se fazia presente. Entre os que admitiram ter perdido amigo por causa do voto, 75% disseram não sentir qualquer arrependimento.
É possível "descalcificar". Os autores admitem, entretanto, que vai levar tempo. "Num prazo curto a descalcificação não ocorrerá Em 2026 não havendo nem Lula nem Bolsonaro na disputa, os candidatos dos dois grupos ainda manterão as divergências", diz Traumann.