A casa do bombeiro e educador físico Seu Vieira tem novas nuances desde o último fim de semana. Situada em uma das bases da escadaria da rua Terra e Mar, a residência agora tem parte da área externa contornada pela pintura de um pescador. Em cores contrastantes com a mistura de tons como amarelo e verde, o mural retrata uma das principais atividades dos moradores do Grande Mucuripe e integra as operações do projeto Farol Encantado. Desenvolvida pelos artistas Gabriel Pig e Berin, além da especialista em marketing Amanda Quintela, a iniciativa propõe a revitalização e requalificação das escadarias que conectam o território por meio do grafite e da mobilização social.
A arte presente na moradia ganha ramificações e se estende por degraus e paredes, resultado de uma movimentação realizada em coletivo. Entre os traços e delineados das tintas, são construídas frases como "criar raízes", "mar de gente", "arte apontada para mim" e "cada degrau é um passo pra dá bom". As diferentes nivelações são ocupadas por pessoas dos mais distintos perfis em um fluxo que segue desde novembro. Por lá passam crianças curiosas pela novidade e adultos que oferecem auxílio. "Hoje você vê o trabalho deles, voluntário, que eles fazem com amor e cabe a nós da comunidade preservar a arte. Vou ser um a brigar por essa beleza que eles estão fazendo", adianta Seu Vieira.
Morador do local há cerca de 30 anos, ele enxerga uma possibilidade de mudança no entorno a partir das práticas organizadas pelos jovens. "Creio que os moradores da vizinhança vão ter outra visão. Todo mundo deve aderir a esse movimento", aponta. A opinião é reverberada pelo pescador Francisco Pacheco, que mora há mais de três décadas na região e retrata algumas das próprias vivências no canal "No Limite da Pesca" no YouTube. Habitante do bairro desde a infância, ele afirma que o local não recebeu uma ideia parecida desde que chegou.
Pacheco conta que, inicialmente, o espaço era um morro que foi cortado no mandato do governador Virgílio Távora (1919 - 1988). A atual estrutura foi oriunda de um deslizamento e, desde então, foi negligenciada pelos políticos. "A escada foi feita, mas foi esquecida pelo poder público. Pensei que nunca fosse aparecer alguém para fazer a manutenção ou tivesse vontade, mas chegou a turma irada do Farol Encantado botando quente", ri. Para que aconteça a devida preservação do "patrimônio", o pescador diz que irá atuar como um dos guardiões ao lado dos outros moradores. "Eles chegaram e deram o pincel na mão de cada um. É um incentivo que faz o ser das pessoas. Esse projeto chegou mesmo para encantar".
As respostas dos moradores do território, a exemplo de Seu Vieira e Pacheco, são indicativos de que as ações promovidas pelo Farol Encantado geram efeito. Elementos presentes na requalificação da escadaria arrancaram elogios daqueles que passaram pelo local durante a etapa de finalização do processo entre os dias 2 e 3 de dezembro, com destaque para o novo visual. "Nós conseguimos nos conectar com pessoas mais velhas que moram aqui há bastante tempo e conseguimos ter essa bênção, essa sorte de ter um suporte. Está sendo muito massa porque o abraço da comunidade foi além da expectativa", compartilha o artista Berin.
O cenário atual difere do existente até então. De acordo com imagens e relatos, a área estava com acúmulo de lixo e não oferecia estrutura adequada para ser uma ponte de travessia. Por isso, a requalificação foi dividida em três partes: a primeira foi a reestruturação dos degraus; seguida por momentos de educação ambiental e plantação de muda com os artistas Spote Ink e Tucano. Já o último passo deu sequência a pintura com artistas moradores do território. Também aconteceram oficinas e palestras, promovidas em parceria com o Ateliê Vinco e com o KUYA — Centro de Design do Ceará, equipamento da Secretaria da Cultura do Estado do Ceara (SECULT - CE), gerido em parceria com o Instituto Mirante. "É totalmente autoral e independente, tá todo mundo chegando junto e sendo algo coletivo", complementa Berin.
Este momento inicial na nova fase do projeto é, também, uma aproximação com demais agentes - entre eles residentes e patrocinadores - e uma possibilidade de estudo para as próximas atividades, a fim de angariar dados e números para pesquisas. "Todas as travessias dos moradores que não têm carro são feitas pelas escadas. Elas são uma forma da gente conseguir criar sensibilidade. Estamos vendo uma forma de conseguir explicar para os moradores como é importante a valorização da arte, mas é muito complicado falar sobre isso se não tem comida na geladeira. Primeiro a gente quer dar, pelo menos, uma melhoria na qualidade de vida", acrescenta. Renovar o percurso por meios artísticos, adiciona Berin, é uma maneira de trazer visibilidade ao local. Consequentemente, o debate também se estende para pontos como mobilidade urbana e economia criativa dentro da periferia.
"Nossa ideia é levar para os próximos anos. A gente já mapeou 18 escadas e a meta é conseguir fazer outras ações. Cada uma tem um pensamento. A gente precisa de um novo estudo para saber como a gente consegue melhorar. A gente queria fazer muito mais, mas é um trabalho que também vai além, mas já estamos muito felizes com o que conseguimos", considera. Esta atenção com as informações se mostra necessária para o futuro, mas está presente desde o começo do planejamento. O artista Márcio Gabriel, mais conhecido como Gabriel Pig, afirma que a educação artística é um dos viés que sustenta o projeto. A troca de experiências viabilizada pela educação foi o que possibilitou, inclusive, o surgimento do Farol Encantado.
O programa nasceu dentro das salas da Escola de Ensino Médio em Tempo Integral (EEMTI) Matias Beck, durante aulas sobre grafite realizadas por Pig em 2017. Os ensinamentos teóricos migraram para a prática no mesmo ano, com a revitalização da escadaria que liga a rua Professor Luís Costa e a comunidade do Pilão. "O projeto foi lindo, mas a gente deu uma parada e fomos criando outros horizontes", lembra. A retomada aconteceu no segundo semestre de 2023, quando o artista voltou a ministrar cursos na mesma instituição.
"O grafite é um interruptor de violência. Sou arte-educador e acredito que o que me faz permanecer é acreditar que têm pessoas para dar continuidade ao meu trabalho. O hip-hop pode mudar o pensamento de uma pessoa e fazer com que ela enxergue com outros olhos uma nova cidade, um novo habitar, um novo estilo de vida", fundamenta. É com este propósito de transformação que os idealizadores pretendem dar continuidade ao trabalho, por meio da criação de uma rede de apoio. "Nós vamos para outras escadas, mas articulando com esses moradores", afirma.
Para além do diálogo com os parceiros e patrocinadores, o projeto também mantém interações nas redes sociais. Especialista em marketing, Amanda Quintela pontua que a presença no meio digital é trazer atenção e ampliar o conhecimento acerca do Grande Mucuripe. "Não tinha nada que fizesse a população olhasse com outros olhos. Nossa estratégia é mostrar que aqui é, sim, um ponto de resistência que a gente precisa ressignificar", estabelece.
Para acompanhar Acompanhe o projeto em @projetofarolencantado