Uma mulher acorda enquanto é retirada de uma cova num país que não é o seu, sem lembrança nenhuma de seu passado, precisando reconstruir sua vida em um lugar completamente desconhecido e tendo apenas sua língua portuguesa como porto seguro. É narrando essa história que gira o enredo do novo livro da autora cearense Socorro Acioli, “Oração para desaparecer”.
Em seu segundo romance desde “A cabeça do santo” e seguindo a linha do realismo fantástico, Acioli começou a imaginar a trama ainda em 2013, após receber a foto de uma igreja enterrada pela metade em Almofala, no litoral do Ceará, pesquisar mais sobre e descobrir que também existe uma cidade em Portugal com o mesmo nome.
“O Brasil é como um paciente em análise que nega o próprio pai e a própria mãe. Negamos a herança africana, a força dos povos originários na nossa própria pele e alma. Enquanto não aceitarmos, teremos essa dificuldade de enxergar a nós mesmos com a lente justa”, afirma a autora ao ser questionada sobre o que é ser brasileira.
"Oração para desaparecer" foi lançado em novembro desse ano e junto com "Cabeça de santo" esteve entre a lista de livros mais vendidos da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip).
Em entrevista ao Vida & Arte, a escritora, que se prepara para o lançamento da obra em Fortaleza, com uma tarde de autógrafos neste domingo,10, na Livraria Leitura, no shopping RioMar, conversa sobre o processo de criação do novo livro.
O POVO – Qual o tema do livro “ Oração para Desaparecer “ e suas principais inspirações?
Socorro Acioli – Este livro começou no dia em que minha amiga Luciana Giffoni me mandou a foto de uma igreja enterrada pela metade. Era a igreja de Almofala. Isso foi em 2013 e fiquei até 2016 pesquisando para decidir se seria um tema possível para um romance. Costumo mergulhar profundamente em cada projeto e eu precisava ter certeza de que a igreja seria um ponto de partida consistente e possível para construir a trama de um romance.
O POVO – Quando começou a escrever já sabia como seria a história do livro ou só foi descobrindo ao longo da construção da narrativa?
Socorro Acioli – Eu tinha somente a foto da igreja. Nos três primeiros anos eu pesquisei sobre Almofala, a igrejinha, os Tremembés, Itarema, descobri que existem seis Almofalas em Portugal, fui tateando no escuro. Cheguei a pensar em desistir, até que encontrei uma crônica do Carlos Drummond de Andrade, datada de 17 de novembro de 1946. Ele era funcionário público e teve acesso aos documentos do Iphan. Nessa crônica ele pede que os artistas, pintores, poetas, prestem atenção na igrejinha de Almofala. E além disso, ele falou de uma mulher que veio a ser minha personagem principal, chamada Joana Camelo. Eu devo esse livro ao Drummond. Sem essa crônica talvez eu tivesse desistido.
O POVO – "Oração para Desaparecer" é uma obra que fala de amor, fé, pertencimento e propõe que experimentemos a vida sob um novo olhar. Quanto tempo durou o processo de pesquisa para escrevê-lo?
Socorro Acioli – Desde a primeira vez que vi a foto até entregar o texto para a Companhia das Letras foram dez anos. É um tempo em que eu mergulho na história, no tema. Fui muitas vezes a Almofala do Ceará. Fui a uma das Almofalas de Portugal. Escrevi esse livro em vários países, durante minhas viagens a trabalho. Entrevistei muitas pessoas. Enquanto eu escrevia e pesquisava, minha vida também passou por grandes mudanças. Foi um processo intenso e feliz. Cada palavra do livro tem a intensidade do compromisso que tive com este trabalho.
O POVO – Um dos aspectos interessantes de "Oração para Desaparecer" é a questão da identidade e de como a língua amarra a história. Em determinado momento alguém constata que a personagem da Cida não fala português (brasieliro), e depois surge a duvidas sobre o que é ser brasileiro e como definir isso. Você tem alguma noção do que é ser brasileira?
Socorro Acioli – Todos nós temos uma grande pergunta na alma sobre o que é sermos brasileiros porque nosso processo de formação de nação foi parcialmente apagado, além de ter sido também gravemente violento. Até pouco tempo aprendíamos que o Brasil foi descoberto, salvo pelo colonizador que trouxe civilidade e progresso. Até pouco tempo ignorávamos que somos fruto, também, de um repertório simbólico dos nossos antepassados e que isso não se apaga, não se destrói. O Brasil é uma ideia complexa de território, povo, nação. E quanto mais negamos olhar a verdade, mais caímos nos erros absurdos do racismo estrutural, da negação das nossas heranças.
O POVO – "Oração para Desaparecer" é seu segundo livro de romance. Como é escrever sobre esse gênero tão popular mundialmente, qual é o maior diferencial?
Socorro Acioli – Eu já escrevi muitos gêneros e o romance é o mais difícil, porque exige muita entrega. E eu escrevo pensando no outro, nos outros, no meu país, no mundo, na ponte que eu posso construir com as pessoas. Eu não escrevo para mim, nem para curar nada, nem para tratar de ferida alguma – para isso eu tenho uma analista maravilhosa que me escuta todas as semanas e está comigo lado a lado. Meu projeto profissional é ser uma receptora dos recados do nosso tempo. Ouvir pessoas. Ver imagens. Visitar lugares. E dedicar anos da minha vida até conseguir costurar todos esses pedaços para entregar um romance ao mundo. Sou muito feliz sendo romancista.
O POVO – Quais são as suas maiores referências e inspirações na literatura?
Socorro Acioli – No momento estou muito mergulhada na obra do Italo Calvino. Comecei um projeto de ler/reler todos os seus romances e novelas. Também ando encantada com a polonesa Olga Tokarczuk. Além deles tenho outros autores de referência: García Márquez, Mariana Enriquez, Júlio Cortázar, Guimarães Rosa.
O POVO – Como você vê o papel da literatura na relação de um povo com a sua cultura, origens e como isso se reflete no desenvolvimento da sociedade?
Socorro Acioli – Estamos em um momento de mais clareza em relação à história do Brasil, cultura, origens. Nunca se falou tanto sobre isso, nunca foi tão evidente que precisamos cobrir a nossa ignorância secular. Ao mesmo tempo, estamos também na década da autoficção, quando todo mundo só quer falar de si mesmo. A literatura é uma ferramenta coletiva muito importante para a mudança das mentalidades. Ainda não somos um país de leitores, mas temos de ter esperanças. Quem escreve e quer ser escritora ou escritor, deixo aqui meu conselho: menos Ego, mais humanidade. Escrever é missão.
Mulheres Fantásticas
Em setembro deste ano foi ao ar no programa Fantástico, da Rede Globo, mais uma temporada de “Mulheres Fantásticas", em que Socorro Acioli foi uma das protagonistas ao lado de Chiquinha Gonzaga e Maria Bethânia.
A autora conta que recebeu o convite para contar um pouco mais sobre sua vida após uma “armação” de seu amigo Bráulio Bessa, para um jantar com a jornalista Poliana Abritta e a produtora Lorena Barbier.
“Eu fui sem saber de nada. Chegando lá ele me mandou contar a história da 'Cabeça do Santo', falar de mim e o plano deu certo. Sem que eles dissessem nada, elas decidiram que eu seria uma das Mulheres Fantásticas de 2023. Foi muito bonito, meu amigo Bráulio Bessa é um sujeito muito inteligente e generoso”, relata a cearense.
A estrutura do quadro conta com uma apresentadora ou narradora convidada, introduzindo a histórias de mulheres que são símbolos de luta e transformação, no Brasil e no mundo, e sua abertura é feita em formato de animação.
Acioli contou no programa sobre sua infância sem os pais, o que inspirou a escrever o livro "Cabeça do Santo" e sua participação na última oficina literária desenvolvida pelo escritor colombiano Gabriel García Márquez, vencedor do Prêmio Nobel de Literatura.
Lançamento do livro " Oração para desaparecer" em Fortaleza