Era 30 de outubro de 2020 quando a escritora, bordadeira e ceramista Betânia Moura recebeu, como presente de aniversário, um vídeo com uma longa entrevista de João Candido Portinari, filho do pintor modernista Candido Portinari (1903-1962). Betânia conhecia os principais trabalhos de Portinari, mas saber detalhes da vida e da obra do artista, filho de italianos, que nasceu em Brodowski, interior paulista, há 120 anos, mudou o rumo da história daquele presente inusitado, no auge do confinamento devido à epidemia da Covid-19.
Três anos depois Betânia Moura e Idalice Barbosa, a psicologia e ceramista - responsável por enviar o "presente" da entrevista - assinam a exposição "Linhas, Cores e Formas. 120 anos do Menino de Brodowski", cuja abertura acontece dia 16 de dezembro, próximo sábado, às 17h, no Centro Cultural Banco do Nordeste.
Entre outubro de 2020 e dezembro de 2023, Betânia e Idalice, conceberam a ideia da homenagem ao artista, visitaram uma exposição de Portinari no MIS, em São Paulo, e se aproximaram do Projeto Cândido Portinari, dirigido pelo filho do pinto, João Portinari, de quem receberam o apoio para tocar o projeto da exposição. No início, seria uma releitura da obra do artista por meio de telas bordadas. No entanto, o projeto cresceu e se consolidou no início de 2023. A exposição em homenagem ao artista paulistano, que se tornou uma referência do modernismo brasileiro ao colocar nas telas um Brasil nu e cru, será vista em bordado, em cerâmica e em peças de vestuário que entrarão numa passarela improvisada no desfile poético a Portinari que abrirá o evento no sábado que vem.
O resultado surpreendeu até as organizadoras do trabalho: "Em conversa, decidimos incluir a cerâmica, outra pessoa quis fazer um diálogo entre a obra de Portinari e a de Ariano Suassuna, e foi crescendo de uma forma que a gente nem se deu conta", relembra Betânia Moura sobre o processo criativo que levou à exposição que reúne 33 artistas, destas 27 são bordadeiras e 7 ceramistas, incluindo a intercessão dos trabalhos de pessoas que bordam e moldam.
"Portinari para mim é um artista importante, porque ele trouxe o Brasil para suas telas e mesmo com as rupturas que o modernismo proporcionou na arte brasileira, o artista conseguiu pintar desde a infância até as questões sociais que assolavam o País no seu tempo, como os problemas das populações negras no País e a exploração do trabalho nas colheitas do café, sem deixar de fora as pinturas religiosas que permeiam sua obra", analisa Betânia, escritora e bordadeira que - com linhas e agulhas - já bordou os pintores modernistas e artistas como Aldemir Martins.
Para Betânia Moura, a obra "Guerra e Paz", de Candido Portinari, sintetiza seu trabalho artístico. Os dois painéis gigantes com 14 x 10 m, pintados entre 1952 a 1956 estão na sede da ONU, em Nova York. "A história conta que ele não foi convidado para a inauguração da obra, por ser comunista", aponta a ceramista.
Os visitantes da exposição poderão, portanto, apreciar releituras feitas da obra de Portinari abrangendo várias vertentes do seu trabalho: "No bordado, teremos os temas da infância, da mulher negra, da seca, da natureza, da música, do bumba meu boi. As esculturas expostas foram inspiradas na obra de Portinari, levando as telas do artista à terceira dimensão. Além disso, o desfile poético".
Foi o livro "A refundação do Brasil. Rumo à sociedade biocentrada" que aproximou a psicóloga e ceramista Idalice Barbosa da obra de Candido Portinari, enquanto concluía a tese de doutorado. "Me apaixonei por ele", confessa Idalice. Chamou sua atenção, a origem pobre do artista que, depois, viria a ser o modernista que pintou a identidade do Brasil. "Ele poderia, por exemplo, depois de morar na Europa, pintar suas raízes europeias, mas ele resolveu pintar as raízes brasileiras e construir uma imagem do Brasil; isso me tocou muito". O detalhe do encontro é que Idalice Barbosa estreia como ceramista na exposição "Menino de Brodowski", com um trabalho feito a partir da obra de Portinari. "Fui tocada pela arte dele e me descobri uma artista", enfatiza Idalice.
A artista Idalice Barbosa afirma que a obra de Candido Portinari dialoga com o Brasil de hoje, no processo de voltar-se para si mesmo. "Durante muito tempo, nossa identidade tinha a Europa como contraste, agora que as coisas se misturaram muito, e é o caso de perguntarmos, quem somos nós?", reflete Idalice. Ela conta que o trabalho de organizar a exposição trouxe também elementos para pensar em como reler alguns personagens da obra de Candido Portinari, a exemplo do indígena e o negro. "A partir da obra, consideramos algumas representações complicadas para o momento atual. Para mim, esse tem sido um momento de muita reflexão e autodescoberta", enfatiza a psicóloga.
"Como o lugar que Portinari deu ao negro e ao indígena do seu tempo na sua obra sofreu alterações no Brasil contemporêneo?" Essa inquietação conceitual também atravessa a exposição "120 anos do Menino de Brodowski". Segundo Betânia, a exposição abre possibilidades para o diálogo sobre a própria obra de Portinari. "Ele pinta mulheres negras sem rosto, no trabalho, como uma sofredora. Já Di Cavalcanti pinta uma mulher negra sensual. São percepções de uma época. Nossa proposta é justamente a de refletir para a atual discussão de representação do negro no Brasil", afirma Betânia.
A exposição "120 anos do Menino de Brodowski" fica em cartaz até o final de fevereiro e contará com visitação das escolas públicas do Ceará.
120 anos do Menino de Brodowski