"Independentemente se eu tivesse vencido ou não (o reality show), eu já sentia que o meu propósito tinha sido feito: mostrar que pessoas como eu podem ocupar os espaços que acreditam que devem ocupar". Com segurança na própria trajetória, a carioca Organzza se orgulha dos feitos conquistados ao longo de 31 anos de vida. O poder de sua fala ocupou a sala de estar da casa de um amigo em Fortaleza, onde a ganhadora da primeira edição do programa Drag Race Brasil passava uns dias de férias. Mesmo com a coroa "guardada na estante", era possível contemplar a rainha, de cara limpa, mas sempre com o dom de fazer arte drag nas mãos.
A multiartista é a primeira brasileira no topo do pódio da maior franquia de reality show do mundo sobre cultura queer - legado iniciado pelo vencedor do Emmy RuPaul Andre Charles em 2009. A carioca agora constrói um reinado muito além dos R$ 150 mil que levou pra casa e do glamour que apresentou durante a primeira temporada da versão brasileira de RuPaul's Drag Race. Organzza é a materialização de um verso da música de Iza quando diz que "brota ouro lá do gueto". Da periferia, surge Vinicius Andrade, o artista que encarna a drag queen nomeada pelo tecido inflamável, leve e armado que é muito usado em roupas para festa de debutante.
A cada episódio do programa, a drag da "criança viada" nascida em Coelho Neto, na Zona Norte do Rio, arregalava os olhos dos jurados com looks e performances que a levavam para a lista das melhores no fim do dia. A desenvoltura se justifica em mais de 25 anos de teatro do menino, que - mesmo no curso técnico de eletrotécnica - escolheu fazer eletiva de dança e, por mas que tenha passado 15 dias trabalhando no telemarketing, bateu o pé e preferiu a arte. "Sempre foi arte, sempre foi o caminho, eu nunca fiz nada além de arte. Desde criança, eu sempre dancei, eu vestia coisas da minha mãe, botava toalha de mesa na cabeça, fazia show para minha família. A 'montação', a performance sempre esteve comigo, chegou um momento que dei nome pra isso", reflete.
A coroa não pesa na cabeça de Organzza. No grande final do programa, a queen aparecia com um cabelo black power armado as alturas reverenciando uma realeza que sempre existiu em seus antepassados. O reinado parece nunca ter sido concedido, ele já existia em uma vida de passos largos em concursos, apresentações e estudos, conforme explica. "Essa coisa da rainha é muito louco. Eu já me via assim, eu já me entendia assim. Isso não foi o Drag Race que me trouxe, o que ele me trouxe foi uma projeção nacional. A ideia do meu produto artístico, do que eu já faço, da minha arte já tinha em mim. Eu faço teatro há 25 anos, a minha vida não começou agora, sou extremamente grato ao que o programa está fazendo na minha vida, mas eu não posso colocar nele a conta de tudo", defende o artista.
Revolução Drag
Ao longo da história da arte drag, requisitos foram sendo embutidos na personificação fiel a performance. O combo de comédia, dublagem, dança, costura e stylist são cruciais para um boa drag, pelo menos é o que projeta uma visão geral e que até o próprio "Drag Race" exige em suas provas. No entanto, Organzaa defende que a arte transformista não pode ser encaixotada. Na nova fase da carreira, ela tem passado por diversos estados do País e contemplado diferentes formas de fazer drag. Em sua passagem por Fortaleza pela terceira vez, a superstar brasileira já sabe que drag cearense não é só comédia.
"Eu tive muito contato com a Deydianne Piaf, com a Mulher Barbada, com a Supremma e a Alpha - que já fez até uma roupa pra mim. A Deydianne é uma drag que faz de tudo, ela faz comédia, mas ela também vai apresentar um show, ela vai fazer um evento corporativo. Essa coisa de você tem que ser completa, você tem que performar, fazer comédia, dançar, cantar, mas não é toda drag que faz isso. A performance não é só quando a gente tá fazendo uma dublagem, a partir do momento que a gente se monta, já está performando", explica.
Moda e referências
Ao provar que entende de moda desde o nome, Organzza também se destacou na competição pelas produções de looks ao longo de cada episódio do reality show. Passeando pelo improviso do upcycling e o glamour da alta costura, a carioca conta ter como fonte de inspiração alguns ícones brasileiros.
"Existem duas figuras que me moldaram muito quanto o artista e uma delas foi Jorge Lafond (1952 - 2003), a Vera Verão, que eu cresci assistindo. Outra figura que é muito importante foi a Lacraia (1977 - 2011), uma funkeira que abriu muitas questões naquela época, como a questão da identidade de gênero. Era alguém que era lido apenas como "um viadinho', mas que já estava ali fazendo toda uma discussão sobre transexualidade. Um ícone da moda, que lançou a tendência de boina jeans, vendeu muito no Rio de Janeiro", revela.
Reinado altamente inflamável
"Eu vou construir um reinado em que o meu reino seja das pessoas como eu", projeta Organzza, ressaltando que a coroa conquistada na competição que elege a "rainha brasileira" ganha mais sentido quando ela puxa outras pessoas pretas, LGBT e periféricas.
"Todo mundo precisa se divertir. Ir numa festa também é ter qualidade de vida, assistir a um show também é ter qualidade de vida. Enquanto eu puder fazer com que essas pessoas tenham acesso, vou fazer", pontua.
O reinado continua em 2024, a turnê "Altamente Inflamável" deve transitar por diferentes regiões do País. "Eu quero conceituar trazendo vivências de pessoas da cena ballroom, performando artistas brasileiros, pretos, LGBT . A cena drag teve um culto muito forte a música norte-americanas. Eu quero também fazer um pouco dessa virada de performar artistas locais também", adianta Organzza que garante que Fortaleza estará na rota.