Exposições que envolvem a apresentação de trabalhos audiovisuais prescindem de boas soluções de expografia tanto para fazerem justiça às obras e à sua fruição, quanto para engendrar novas formas de espectatorialidade diante de um turbilhão de imagens animadas que surgem de forma ininterrupta nos diversos dispositivos que nos acompanham na vida pública e privada.
A 22º Bienal Sesc Videobrasil tem vários méritos nesse sentido, apresentando uma curadoria consistente, assinada pela dupla Raphael Fonseca e Renée Akitelek, que reúne trabalhos de artistas de diversos países margeados pelo sul global. Os temas da memória e da fantasmagoria atravessam algumas das obras apresentadas na exposição, e torna-se particularmente estimulante perceber como a curadoria e a expografia justapõem de forma criativa os trabalhos em vídeo a outras linguagens como escultura, fotografia, desenho, pintura, etc, criando um espaço expandido no qual o espectador é convidado a acessar vários fragmentos do corpo háptico numa experiência multissensorial.
Ao longo dos seus 40 anos de história, o evento esteve na vanguarda no que se refere ao compromisso em criar espaços de difusão e fomento para artistas fora do eixo hegemônico do norte global. O caráter político dos trabalhos apresentados também não é algo que possa ser ignorado. Conflitos geopolíticos na Ásia, no Oriente Médio e na América Latina tomam o espectador de assalto nesse passeio que atravessa obras de 38 nacionalidades.
Se por um lado a Videobrasil foi pioneira em estabelecer um recorte territorial que afirmava politicamente a força criativa dos países do Sul Global, o enquadramento da sua visão idiossincrática de curadoria sempre teve em mente um alargamento do entendimento do "vídeo" para além dos seus limites técnicos, estabelecendo uma contaminação progressiva entre linguagens, tecnologias e conceitos ao redor da imagem animada.
Ainda que "vídeo" ou "cinema" sejam termos essencialmente polissêmicos e repletos de significados díspares, é justamente com essa ambiguidade que eventos como a Bienal Videobrasil jogam para discutir criticamente os estados da imagem na contemporaneidade, desarmando dispositivos de representação dos agentes do sul global e experimentando formas alternativas de somar os trabalhos dos artistas às potencialidades do espaço expositivo e ao discurso curatorial.
Em conversa exclusiva cedida ao O POVO, a diretora artística e fundadora da Bienal Sesc Videobrasil Solange Farkas falou sobre a história do evento, contextualizando a atual edição da mostra, que segue em cartaz até o dia 25 de fevereiro no Sesc 24 de Maio, e adiantou alguns dos planos e projetos futuros que envolvem uma expansão do projeto Videobrasil para estados do Norte e Nordeste, incluindo o Ceará.
O POVO - Vamos começar a conversa olhando retrospectivamente para esses 40 anos da Bienal Videobrasil. Qual é a trajetória da instituição e o papel dela na atualidade? Entendendo que a bienal é um vetor incontornável para a difusão do vídeo no Brasil.
Solange Farkas - Ela teve início como um festival de vídeo há 40 anos, buscando mapear uma produção que estava apenas começando quando os primeiros equipamentos de vídeo chegaram ao Brasil, e os artistas começaram a utilizá-los. A história do vídeo no Brasil e a história do Videobrasil correm paralelas, sendo ambas absolutamente contemporâneas. Naquela época, quando os primeiros equipamentos de vídeo chegaram ao País, as pessoas que os experimentavam certamente não imaginavam que o vídeo alcançaria o patamar atual, um espaço expandido que se relaciona e potencializa não apenas a arte contemporânea no Brasil, mas no mundo todo. O vídeo era uma ferramenta low tech, bastante low tech naquela época. No entanto, possuía uma característica transformadora, sendo esse o gatilho que nos trouxe até os dias atuais. Naquele momento, enfrentávamos um grande sistema de censura, tanto política quanto cultural e de costumes. Foi nesse contexto que surgiu o Videobrasil. Os artistas que se apropriaram do vídeo naquele momento tinham a perspectiva de mudar o estado das coisas, principalmente tentando transformar a televisão brasileira em uma verdadeira janela para a cultura brasileira. Ao longo desses anos, seguimos com a clara perspectiva de encontrar um lugar para legitimar essa produção, criando espaços para exposição, reflexão e incentivo.
OP - Existe uma variedade de interseções do vídeo com outros formatos, suportes e linguagens artísticas. Como lidar com a expografia em um espaço tão singular como o Sesc 24 de Maio? A 22ª Bienal Videobrasil apresenta uma expografia desafiadora que explora formas alternativas de espectatorialidade e temporalidade. Como conciliar isso com o conceito curatorial, a partir da frase de Waly Salomão de que "a memória é uma ilha de edição"? Como esse diálogo ocorre com os artistas e qual é o seu papel como diretora artística em relação aos dois curadores?
Solange - Ao convidar os curadores, trabalho com eles para orientá-los sobre a particularidade do Videobrasil e o olhar da instituição sobre as linguagens artísticas em geral, com foco especial no vídeo. O nome "Videobrasil" gera questionamentos, pois associa o nome da bienal a uma mídia específica. Mantive esse nome, mesmo quando abrimos a bienal para outras linguagens, como forma de preservar a identidade que construí ao longo dos anos. Ao abrir a bienal para outras linguagens, não pretendíamos apagar a história do vídeo, pelo contrário, tratava-se de reconhecer a sua importância no contexto da arte contemporânea. O vídeo contaminou e foi contaminado por outras expressões artísticas. Encontrar displays apropriados para potencializar as proposições dos artistas é o desafio da curadoria. Pensar em alternativas de expografia considerando a presença do vídeo sempre foi uma premissa da Bienal Videobrasil. Se eventualmente não tivermos vídeos inscritos na chamada aberta, a bienal não deixará de existir. No entanto, temos observado o oposto acontecer cada vez mais. A relação entre a arquitetura e o vídeo traz desafios. O vídeo tensiona os padrões formais estabelecidos no campo da arte, afetando o espaço da instituição, os processos de conservação e até mesmo a formação acadêmica. Pensando a exposição como forma narrativa, como o vídeo se comporta no espaço expositivo? Quais são os displays tecnologicamente apropriados para fortalecer o espaço e potencializar a presença do vídeo? É imprescindível considerar a arquitetura, e é nesse ponto que as exposições ganham potência. Uma exposição pode se comportar de maneira diferente em um cubo branco tradicional, sem interferências, em comparação com arquiteturas diversas que não são necessariamente espaços de galeria. Se não levarmos em consideração essas condições impostas pela arquitetura, inevitavelmente cometeremos erros. Estamos falando de arte contemporânea, e criar caixas é algo que devemos evitar. No início dos anos 2000, houve uma explosão dessas "caixas" - caixa da fotografia, caixa do vídeo, caixa da pintura, caixa da escultura. Não há mais lugar para isso. O desafio da curadoria é transformador: lidar com a diversidade de linguagens e suportes para criar a narrativa proposta para a exposição, considerando a arquitetura como elemento fundamental para a arte.
OP - Solange, gostaria de destacar o momento de efervescência artística e cultural que o Ceará está vivendo, potencializado pela inauguração de novas instituições de ponta como a Pinacoteca do Ceará, o Museu da Imagem e do Som, o Centro de Design, a Estação das Artes, o Museu Ferroviário e o Centro Cultural do Cariri. Acredito que podemos nos inspirar muito com experiências curatoriais como a do Videobrasil, no sentido de pensar novas alternativas de expografia que não reforcem maneirismos hegemônicos ou estereotipados, além da escolha política assertiva sobre quais territórios e quais produções invisibilizadas podemos lançar luz.
Solange - Quero aproveitar para falar especificamente sobre o atual cenário cultural no Ceará. Ao pensar em projetos para o Videobrasil a partir desta edição, tenho como meta ampliar a noção de sul-global dentro do próprio Brasil. Isso implica em fortalecer a conexão e direcionar o olhar para o norte e nordeste do País. Ainda existem diferenças significativas entre o Sul, Nordeste e Norte. Essa é uma meta para o futuro próximo: ampliar e criar mais presença no Norte e Nordeste brasileiro. Estou trabalhando com a perspectiva de levar um recorte da exposição da bienal para o Ceará, um lugar que me interessa bastante, especialmente pela qualidade técnica dos novos espaços. Estou considerando levar projetos específicos do Videobrasil para esses novos espaços, tanto em Fortaleza quanto no Cariri, a partir do próximo ano. É um projeto que estou desenvolvendo, pensando em antecipação, e espero concretizá-lo em breve.