A Disney tentou - e muito - postergar ao máximo a proteção sobre seu principal produto. Em um primeiro momento, até conseguiu. Entretanto, não impediu que o rato mais famoso do mundo escapasse dos seus direitos autorais - ou pelo menos uma versão dele. Desde 1º de janeiro de 2024, a primeira versão de Mickey Mouse está em domínio público.
Assim, qualquer pessoa nos Estados Unidos pode utilizá-la e fazer alterações sem a necessidade de autorização do autor que, até o momento, possuía os direitos autorais - nesse caso, a Disney. Não à toa foram lançados dois novos filmes de terror independentes tendo o personagem como protagonista.
Vale citar, porém, que somente o Mickey do curta-metragem “O Vapor Willie”, lançado em 1928, entra nessa condição. Desta forma, quem utilizar elementos mais recentes do mascote, como bermudas vermelhas ou luvas brancas, pode ser acionado pela Disney, que ainda detém a marca registrada dos Mickeys posteriores ao “original”.
O fato é que uma obra entrar em domínio público não é novidade. Ano após ano, diversas criações perdem a exclusividade de uso. Entretanto, o caso envolvendo Mickey e Disney chamou ainda mais a atenção devido à importância até hoje - do ponto de vista econômico e de imagem - que o personagem tem para a empresa.
Antes, uma explicação sobre o cenário. Segundo a Lei de Direitos Autorais dos Estados Unidos, obras artísticas e personagens se tornam domínio público após 95 anos de seu lançamento - o que ocorreu com Mickey em 2023. Ele seria disponibilizado 20 anos antes, se a Disney não tivesse tido êxito no lobby e na pressão para a extensão dos direitos autorais sobre os personagens para 95 anos.
Diante da possibilidade de uso irrestrito e de interferências em uma obra original, a configuração de domínio público representaria algo negativo para a criação? Para Humberto Cunha, professor e pesquisador em Direitos Culturais da Universidade de Fortaleza (Unifor), o domínio público representa, na verdade, uma devolução do criador à sociedade do acervo cultural do qual “usou” para a sua produção após anos usufruindo dela - bem como seus herdeiros, que também perdem os direitos econômicos nesse contexto.
“É uma consequência da vida em comunidade. O domínio público é uma devolução da criação à sociedade, porque ninguém cria algo ‘do nada’, mas a partir do acervo cultural existente, ou seja, um criador produz levando em consideração seu idioma, suas referências culturais e a comunicação que estabelece com a sociedade. A propriedade intelectual em termos de direitos autorais tem a peculiaridade de que a sociedade dá e em algum momento isso volta a ela”, defende.
Para o professor, essa configuração estimula a criação de novos elementos, porque há sempre uma contribuição nova - mas não uma contribuição “sem raiz ou origem”. As pessoas passam a ter a possibilidade criativa de fazer relações segundo seus universos de conhecimento e de valores e podem levar em consideração seus pontos de referência.
Quanto às possibilidades de modificações sobre a ideia original da criação - como no caso do Ursinho Pooh, que em 2023 chegou a ser utilizado como personagem de um filme de terror em vez de uma produção infantil -, Humberto analisa que não é exatamente um problema, mas “é algo que exige cautela especificada na lei de direitos autorais”.
Ele explica que o Estado é responsável por garantir a integridade da obra que entrou em domínio público. Não significa que haverá censura das derivações, mas é preciso que o Estado conserve os elementos originais, como em uma biblioteca pública ou em um museu, para que qualquer pessoa que deseje conhecer o trabalho inicial tenha acesso a ele.
O pesquisador cita o que ocorreu com o escritor Monteiro Lobato. Quando sua obra entrou em domínio público em 2019, editoras passaram a poder publicar livremente títulos adaptados ou na íntegra, e o autor Pedro Bandeira iniciou um projeto para alterar trechos considerados racistas relacionados ao universo de “Sítio do Pica-Pau Amarelo”.
“Há pessoas reformulando as obras de Monteiro Lobato para excluir preconceitos. Pode fazer isso? Pode, mas é absolutamente indispensável que, caso alguém queira conhecer como foi o ‘Sítio do Pica-pau Amarelo’ em sua versão original, o Estado a forneça a partir de seus arquivos”, analisa.
Com o passar dos anos, mais obras e criações entrarão em domínio público. Para Humberto Cunha, esse contexto leva a uma tendência de que, no futuro, as produções irão dialogar mais livremente entre si diante da ausência de impeditivos legais para essas apropriações. Assim, os cenários propiciam usos mais criativos e diversos das criações. Não seria tão absurda a ideia de um Superman no universo da Marvel, por exemplo, diante da iminente entrada do personagem da DC em domínio público na próxima década.
“Existe algo que são as estratégias comerciais. Enquanto a obra estiver em domínio privado, o autor pode reclamar sua integridade e desautorizar qualquer uso diverso daquilo que ele entende como correto. Entretanto, quando ela cai em domínio público é possível que ocorram miscelâneas com mais intensidade porque todo mundo está autorizado a utilizar esse instrumento. Não sei se de fato ocorrerá isso, mas há liberalidade normativa para que isso aconteça sem que ninguém pague. Vai depender muito da criatividade. Quanto mais as pessoas tiverem acesso às obras, maior será, em tese, a criatividade que poderá resultar disso”, pontua.
DC no olho do furacão
A Disney não será a única grande empresa envolvida com entretenimento a ter de lidar com a expiração de direitos autorais de suas criações. Na próxima década, a DC Comics estará no “olho do furacão”, pois alguns de seus principais personagens entrarão em domínio público - ou pelo menos suas primeiras versões, como no caso de Superman (2034), Batman (2035) e Mulher-Maravilha (2037). Paira, então, a dúvida: como a empresa se posicionará diante desse cenário?
Convenção de Berna
Cada país possui uma legislação diferente, mas, de acordo com a Convenção de Berna, o prazo mínimo para uma obra entrar em domínio público é de 50 anos após a morte do autor. No Brasil, as obras são protegidas por 70 anos após a morte do(s) autor(es), à exceção das fotográficas, audiovisuais e coletivas, que duram por sete décadas a partir da publicação. No caso do Mickey, a proteção do ratinho no Brasil vai até 2042, quando serão completados 70 anos do falecimento de Ub Iwerks, co-autor do curta-metragem.
Outras obras
Nos últimos anos, outras criações e autores de destaque também entraram em domínio público, como no caso dos livros “1984” e “A Revolução dos Bichos”, de George Orwell, em 2021. Em 2023, o filme de ficção científica “Metropolis” também foi contemplado. Desde o primeiro dia de 2024, as obras do escritor brasileiro Graciliano Ramos também entraram em domínio público.