Uma passagem do ensaísta, prosador e poeta Khalil Gibran ressalta que as pessoas são "postos de enriquecimento dos dons da vida". O trecho é resgatado pela filósofa, professora e escritora Lúcia Helena Galvão ao explicar, em entrevista ao Vida&Arte, a capacidade de conexão com aqueles que acompanham o seu trabalho. Nascida no Rio de Janeiro e residente de Brasília, ela fala com a propriedade de uma profissional que ministra aulas há mais de 30 anos na organização Nova Acrópole Brasil e consegue expandir o alcance do próprio conteúdo para as redes sociais, espaços nos quais acumula mais de um milhão de seguidores no somatório das plataformas YouTube, Instagram e Twitter.
Ao tratar sobre assuntos que vão desde a história da filosofia até a lucidez necessária para enfrentar os desafios do mundo atual, Lúcia conquista gerações mais novas e amplia o conhecimento para obras artísticas, a exemplo do livro "Instantes de Um Tempo Interior", título que reúne mais de 100 textos escritos ao longo de 20 anos. A presença abundante - nas salas de aulas, palestras, estantes e redes sociais - é uma forma de despertar interessados em questões filosóficas e mostrar que "todas as atitudes cotidianas podem ser vistas sob o ângulo da filosofia".
O POVO - Lúcia, a senhora consegue identificar o início do interesse em relação à filosofia? Como aconteceu a aproximação com a área?
Lúcia Helena Galvão - Quando eu era adolescente, eu tinha afinidade com dois escritores:o Machado de Assis e Khalil Gibran. Eu via neles algo a mais que eu não sabia explicar, mas alguma busca de um sentido mais profundo para a vida. Muito tempo depois eu fui entender que isso era filosofia, só que não me interessava uma filosofia muito intelectualizada. Eu queria criar algo mais prático, que se aplicasse à vida, como aqueles filósofos antigos que eu já tinha ouvido falar. Eu encontrei a Nova Acrópole com 24 anos, entendi que essa instituição em nível mundial fazia exatamente o que eu estava procurando, uma aplicação da filosofia à vida. Estou nesta instituição desde essa época e já tenho uma carreira de 34 anos como professora.
OP - O que te levou, nesse primeiro momento, a entrar nas sala de aulas e também, posteriormente, levar esse conhecimento para as redes digitais e expandir a conexão com o público?
Lúcia - Eu queria muito passar adiante a boa nova, ou seja, o quanto a filosofia podia ser útil como tinha sido na minha vida. Eu achei que não podia reter aquilo. Khalil tem uma passagem em que ele diz que nós somos "um posto de enriquecimento dos dons da vida". As coisas boas que vêm para nós não são totalmente nossas, são para que a gente enriqueça, coloque o nosso melhor e coloque novamente no fluxo da linha.
OP - E como funciona essa conexão com o mundo digital agora para a senhora? Como a senhora desenvolve o conteúdo para as redes digitais?
Lúcia - Na verdade, no início, foi bastante complicado, como é pra todo mundo que só dá aulas presenciais. Tinha que fazer todo o exercício de imaginação para imaginar que por trás de uma câmera, havia um público sedento por informações necessitando do que eu dizia. Até que isso se tornou mais fácil. Hoje eu imagino claramente. Diante de uma câmera, tem um público ali por trás, necessitando ouvir as palavras que eu estou dizendo. Hoje já temos 15 anos no nosso YouTube da Nova Acrópole e isso tem despertado muitas pessoas, tem trazido muitas pessoas até nós.
OP - Até porque já são mais de 800 mil seguidores só no Instagram, além do YouTube e do Twitter, por exemplo. Como a senhora avalia o interesse, principalmente das pessoas mais jovens, que são as mais conectadas?
Lúcia - O que eu percebo é que nós estamos criando nosso espaço. Quando eu comecei, as pessoas diziam: 'Não faça vídeos grandes, ninguém vai assistir'. Eu coloquei as nossas palestras de uma hora lá dentro. Aos poucos, as pessoas foram vendo o nosso formato e buscando, conhecendo. Nós conseguimos efetivamente atrair o público para publicações de uma hora ou mais. E hoje nós temos um público cativo que só se expande, de pessoas que gostam de refletir junto conosco, pessoas que entendem a nossa reflexão ou gostam de algo que seja plausível, que se possa acompanhar, que se possa aplicar. Tem vindo também pessoas cada vez mais jovens, o que tem sido muito interessante. São questionadores, querendo respostas para vida. Tem sido uma fase nova e muito boa para nós, muito desafiadora.
OP - Quais são os principais desafios de falar com esse público que também não chegou ainda na vida adulta e está começando a se interessar pela filosofia?
Lúcia - Você não pode recorrer à experiência de vida porque eles ainda não têm. Então, você tem que fazer com que eles entendam através da imaginação as situações que a vida trará. Eles são muito imaginativos, são capazes de criar um painel na imaginação. Nós fazemos essa simulação e colocamos eles no palco de várias dificuldades que normalmente todos nós passamos, buscando saídas mais lúcidas.
OP - Essas imaginações lhe dão uma troca, no sentido de poder também fabular cada vez mais as próprias reflexões?
Lúcia - Com certeza, eles dão um feedback muito bom, imaginativo, para lidar com mitos, por exemplo, eles são sensacionais. Me ajudam a desenvolver essa linguagem simbólica, porque é o que mais diz respeito a eles. Tenho aprendido muito com os jovens
OP - Quais são os cuidados que se deve ter ao falar sobre filosofia para trazer reflexões críticas, para que seja possível ter um debate sem perder a profundidade?
Lúcia - Nós somos fiéis a valores. Temos uma série de valores que nós consideramos aqueles que norteiam a vida humana: justiça, fraternidade, bondade… Enquanto estamos alinhados com esses valores, não há como dizer alguma coisa que esteja fora da linha, não há como chegar a nenhum tipo de ofensa qualquer que seja. Estamos abrindo espaço para que as pessoas entendam e reflitam conosco. O exercício da reflexão tem sido muito bem recebido. Hoje não há muito hábito de refletir e nós temos proposto isso: vamos refletir juntos
OP - É interessante mencionar a conexão entre você e seus seguidores. Por que você acha que conseguiu criar essa conexão tão grande com quem pode te escutar?
Lúcia - Autenticidade e simplicidade. As pessoas sentem que eu falo daquilo que eu estou me esforçando para viver, aquilo que realmente notei na minha vida, não é uma fachada. Eu não estou oferecendo algo de incoerente com aquilo que eu sou. Quando você está comprometido com aquilo que diz, você não fala só através de palavras, todo o seu gestual, toda a sua presença, inspira confiança. Isso vai criando vínculos de confiança, onde eu posso mesclar ensinamentos de filosofia que recebi para que as pessoas também experimentem na sua própria vida através da filosofia.
OP - A senhora mencionou que há uma falta de reflexão nesse mundo contemporâneo, mas também a gente fala sobre esses esses jovens alunos que estão chegando e se interessam pelo assunto. Existe alguma diferença geracional entre os jovens de hoje que chegam pela primeira vez ao seu conteúdo e aqueles primeiros alunos de 30 anos atrás?
Lúcia - Posso dizer que, como dizia Bauman com a sua modernidade líquida, eles têm uma tendência a serem discípulos de atenção muito curtos. Para que você cative, você tem que fazer que ele acompanhe o seu raciocínio e caminhe com você. Se você deixa ele se desconectar, você o perde. É um exercício, como se você tivesse um fio que liga o seu olhar ao olhar dessas pessoas, que você sabe que as mantêm ali. Se esse fio se rompe, ele vai se desinteressar.
OP - De que maneira a gente consegue aplicar a filosofia nas atividades cotidianas? Quais exercícios a gente deve e pode fazer?
Lúcia - Todo o tempo nós estamos nos deparando com questões que poderiam ser melhor respondidas através da filosofia. Quando você vai tomar uma decisão, por exemplo, ao invés de tomar aquela decisão que só beneficia a sua pele, seja fundamentada no interesse egoísta, você pode pensar duas vezes e imaginar como poderia, com essa decisão, beneficiar o máximo de pessoas possível. O tempo todo tem questões que a vida nos coloca. Saber controlar as nossas emoções quando queremos ser justos, ou seja, não ter precipitações, não decidir de forma impulsiva, saber manter a cabeça fria. O autocontrole, o domínio das nossas emoções, a sobriedade, a lucidez as escolhas altruístas com referencial de vida, todas as atitudes cotidianas que nós temos podem ser vistas sobre o ângulo da filosofia .
OP - A senhora menciona a questão da lucidez. Como pode ser considerado um ser lúdico no mundo contemporâneo? Quais são as principais dificuldades que a gente enfrenta para manter a lucidez na modernidade?
Lúcia - Lucidez vem de lux, que é luz. É como se nós iluminássemos as coisas da vida para vê-las com maior nitidez para poder tomar decisões mais acertadas. Essa lucidez vem desse nível de maturidade que vamos conquistando e do nosso autocontrole para não deixar que incursos, instintos, tomem à frente nas nossas situações críticas. Você deve ter a capacidade de se manter focado nos seus valores, naquilo que você tem de melhor para que a sua decisão ilumine as possibilidades da melhor maneira possível
OP - Em 2023, a senhora lançou o livro "Instantes de Um Tempo Interior" com mais de 100 textos que foram escritos ao longo de 20 anos. Quais foram as reflexões que surgiram ao revisitar esses textos?
Lúcia - Eu costumo dizer que as pessoas que o leem me conhecem melhor do que o meu vizinho de porta, porque é uma catarse do que eu aprendi, de todas as situações difíceis que eu superei. Lidar com a poesia foi uma maneira de me mostrar de uma forma bem desnuda mesmo. A ideia é que as pessoas ali também encontrem indicações que sinalizam o próprio caminho.
OP - Por que a senhora decidiu lançar ele especificamente no ano passado?
Lúcia - Na verdade, eu não pensava em lançar essas poesias. Eram mais poemas escritos para mim mesma, mas algumas pessoas gostavam e sugeriram que eu mandasse para uma editora. Foi resultado da insistência de alguns amigos e eu resolvi realmente tentar.
OP - A senhora escreve poemas, mas também tem roteiros, trabalha com teatro e outras esferas de linguagens artísticas. A arte sempre andou em paralelo com a filosofia?
Lúcia - Eu sempre fui muito ligada à arte, mas não imaginava que eu seria capaz de produzir. Isso foi uma surpresa através de um autoconhecimento maior que a filosofia me proporcionou, eu descobri que poderia expressar em algumas modalidades, que eu não me conhecia tão bem assim e que eu tinha potencialidades que não eram conhecidas.
OP - Em qual sentido a arte dá vazão a algo que a filosofia talvez não alcance da mesma maneira?
Lúcia - A arte é capaz de resgatar a beleza, que às vezes a gente olha e não vê. A arte tem essa capacidade de resgatar a beleza dentro do caos. Então, ela dá um sentido, ela resgata a nossa vida do Caos e nós começamos a entender o sentido das coisas através da beleza. ela justifica os acontecimentos da nossa vida, redime da arbitrariedade.
OP - Quais são os planejamentos para o ano de 2024?
Lúcia - Provavelmente terei mais um livro, mais uma peça teatral também. E começarei a fazer algumas palestras fora do País. Vai ser um planejamento bem ousado. Vou começar a ousar um pouco mais ao palestrar em países de língua espanhola, em comunidade brasileira nos Estados Unidos.
OP - Em 2023, a senhora publicou nas redes sociais uma frase que diz que "o filósofo quer despertar filósofos". O que é necessário para que esse interesse continue permanente, tanto para que a senhora desperte outros filósofos, quanto para despertar outras pessoas que nem sabem ainda que tem essa capacidade?
Lúcia - É necessário que você esteja aplicando a filosofia porque ela cria um hábito. Naturalmente, as coisas que surgem diante de você, você já se coloca de uma maneira filosófica. O que é mais humano fazer? Qual é a decisão que me faz crescer como ser humano e que, através do meu exemplo, pode beneficiar outros? Você tem que praticar para desenvolver o hábito, delegar isso como uma capacidade sua. Chega um determinado momento que já é automático. A maneira como você vê e conjuga a vida à sua volta já é filosófica, cada vez mais, à medida que a gente pratica.
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