Janeiro em Fortaleza marca, oficialmente, o início da folia carnavalesca. O mês já traz os toques das marchinhas, as fantasias dos foliões e os blocos nas ruas. A movimentação da época conhecida como Pré-Carnaval, entretanto, é recente e foi fortalecida há pouco mais de uma década. Quem conta é o músico Charles Wellington, que veio do Recife a Fortaleza em 1985, quando a capital cearense ainda era sinônimo de descanso durante o período.
O profissional acompanhou as mudanças nestes quase 30 anos e comprova que, atualmente, o cenário é outro. Ele foi um dos criadores do bloco Sanatório Geral, que manteve as atividades até 2016, e foi um dos fundadores do bloco Hospício Cultural ao lado de artistas como Gildomar Marinho e Alan Kardec Filho. O grupo teve raiz e mantém tradição no bairro Benfica, bairro boêmio e um dos principais polos carnavalescos da Capital.
Em entrevista ao O POVO, Charles e Alan afirmam que o crescimento da festa permitiu a expansão dos grupos, mas também trouxe outros desafios. Eles não participaram dos editais da Secult - CE (XVII Edital Ceará Ciclo Carnavalesco) e da Secultfor (Edital de Concessão de Apoio Financeiro aos Blocos de Rua Independentes do Ciclo Carnavalesco de Fortaleza e Edital de Credenciamento de Artistas para o Ciclo Carnavalesco de Fortaleza) pela demora nos resultados e no repasse de verba para os credenciados.
Os músicos adiantam que a agenda de 2024 do Hospício Cultural será mantida por eventos independentes, pois o desejo é que o "abraço coletivo" da tradição presente no projeto continue como serpentina pelas ruas.
O POVO - Toda a trajetória dos blocos (Sanatório Geral e Hospício Cultural) é permeada pelo Benfica, que mantém forte tradição carnavalesca. Para vocês, o que ainda mantém o Carnaval no bairro?
Charles Wellington - É necessário. O Benfica continua por tradição, já está no sangue, é a história do "Quem É de Benfica". Eu me identifiquei muito com esse movimento, que teve o momento de glória, mas também teve quando só tinham 30, 40 pessoas naquele estilo de cortejo. Mas era outra época
OP - E de que maneira vocês enxergam o atual ciclo carnavalesco de Fortaleza?
Alan Kardec Filho - Tem que ter uma certa triagem para os profissionais apresentarem seus projetos nos editais. Talvez uma solução seria um mérito de Cultura, um convite por parte do poder público para os blocos que já são tradição participarem todos os anos. Para tanto o Estado, quanto a Prefeitura, tentarem mapear esses grupos que trazem uma carga cultural muito grande. Não só os blocos, mas também os maracatus, afoxés e todos. A gente consegue levar para o Carnaval o som autoral da guitarra baiana, dos metais tradicionais, além de mostrar a cultura de cearenses como Ednardo, Fausto Nilo, Belchior.
Charles - E não deixar morrer o tradicional na Cidade e no Estado. Tem espaço para o novo, mas o que é tocado hoje no Carnaval, é tocado o ano todo. Logicamente, deve tocar na época do Carnaval, mas tem que ter um olhar do poder público em cima do que é tradicional, porque é o que conta a história cultural da Cidade.
OP - Todos os anos os realizadores culturais trazem as mesmas pontuações em relação a preparação do período carnavalesco, a exemplo do atraso no planejamento e repasse de verbas. Como está o contexto para o Carnaval deste ano?
Alan - A gente optou por não fazer parte de nenhum edital, é muito complicado. Não existe conhecimento aprofundado sobre os tipos de blocos. Inclusive, o próprio Hospício tem feito eventos totalmente independentes, sem depender do poder público. Ano passado nós participamos da Virada Cultural do Centro Cultural Banco do Nordeste (CCBNB), do Corredor Cultural do Benfica e já temos uma agenda para cumprir este mês, fora da linha dos editais. O Hospício Cultural é um abraço coletivo grande, a gente é composto por músicos profissionais, claro, mas também de pessoas que não vivem 100% da música. Todos se abraçam de forma maravilhosa para fazer música boa e fazer com que a alegria chegue nas pessoas.
OP - Então, esses são os planos para o Carnaval de 2024?
Charles - É. Nós ainda estamos em negociação e acredito que até o Carnaval já vai ter algo, porque as agendas ainda estão fechando.
Alan - Tendo em vista que a própria Secult, se a gente for puxar pelo ano de 2023, lançou as atrações na última semana. Até uma semana antes de iniciar o Carnaval, a gente não tinha certeza de datas. Já estamos nos encaminhando mais uma vez para ter o mesmo problema. O Carnaval já é amanhã, ninguém sabe quem vai tocar. (após a entrevista, realizada no dia 3 de janeiro, a Prefeitura de Fortaleza divulgou parte das atrações do Ciclo Carnavalesco na manhã do dia 12 de janeiro).
Charles - Era para ter (confirmação de datas e repasse de verbas) já no mês de setembro, porque, na parte cultural, tem determinado tipo de bloco de maracatu, por exemplo. Esse pessoal já tem que ter tudo pronto em dezembro (os editais do Ciclo Carnavalesco foram divulgados pela Secult e Secultfor em dezembro).
Alan - Lembrando que esse edital é para credenciamento, ainda não contemplou ninguém. Ninguém sabe quem vai tocar, quem não vai tocar. Tem que ter um estudo para ter o Carnaval na nossa cidade. Aliás, não apenas em Fortaleza, mas em todo o Brasil.
OP - Vocês mencionaram, ao longo das falas, a questão da música autoral e da mistura de ritmos nas escolhas para as apresentações. Como está o repertório deste ano?
Charles - A gente vai trabalhar com dois cantores e duas cantoras. Não pode ser um grupo só de homens, todos têm que participar da festa. O repertório tem ritmos tradicionais, como samba, frevo, música instrumental, axé mais anos 1990, mais anos 2000. Dá para brincar com arranjos bem próprios e músicas autorais em cima do bloco, com as músicas do Gildomar Marinho (cantor, compositor e um dos fundadores do Hospício Cultural). O bom disso é que a gente consegue abraçar nossas regiões, principalmente a Nordeste e do Norte. Sempre tem carimbó, a guitarrada, o reggae do Maranhão. Além da música cearense, tocando Ednardo, Belchior, Fagner. Às vezes nem está no nosso roteiro, o pessoal pede e a gente tem que cantar.
Alan - No bloco a gente consegue reunir pessoas maravilhosas para curtir em um ambiente maravilhoso, porque o ambiente é a gente que faz. É juntar todos esses músicos maravilhosos, os foliões, trabalhar se divertindo. E o melhor de tudo é o nosso aprendizado. A perspectiva para o futuro do grupo é que a gente consiga obter êxito nesse Pré-Carnaval e Carnaval, para que a chama do grupo se mantenha acesa e a gente consiga se inscrever em editais. É importante porque traz estrutura, o compromisso da data. A gente quer continuar levando essa alegria para as pessoas.
Agenda
Quem deseja seguir a folia do Hospício Cultural pode ficar de olho na agenda do bloco. As apresentações acontecem no dia Raimundo dos Queijos nos dias 21 e 28 de janeiro, além de ensaio aberto na Gentilândia no dia 27 de janeiro. Mais infos: @blocohospicio
Tradição
Para Charles, o bloco Sanatório Geral revolucionou o bairro do Benfica. O grupo surgiu em 2006 e se manteve ativo por dez anos. Pouco tempo após o encerramento das atividades, foi criado o bloco Hospício Cultural, que continua com ações desde 2016