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Humor cearense é defendido como Patrimônio Cultural da Unesco
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Humor cearense é defendido como Patrimônio Cultural da Unesco

Com possibilidade de se tornar patrimônio cultural pela unesco, o humor cearense ganha espaço nos meios acadêmicos
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Patrícia Nassy, Laiza Milena e Juliana Maia apresentaram o espetáculo
Foto: Ronny de Oliveira/Divulgação Patrícia Nassy, Laiza Milena e Juliana Maia apresentaram o espetáculo "Mulheres de Quinta"

Da conversa fiada entreouvida na Praça do Ferreira às “marmotas” do show de humor na Avenida Beira-Mar, a gaiatice cearense é percebida e vivida no cotidiano. O Estado que exportou Chico Anysio, Tom Cavalcante, Renato Aragão, Tiririca e tantos outros segue renovando a fama de “Terra do Humor” e agora pode ganhar ainda mais reconhecimento.

Essa é a busca dos professores Humberto Cunha e Allan Magalhães, junto com o Grupo de Estudos e Pesquisas em Direitos Culturais (GEPDC), do Programa de Pós-Graduação em Direito Constitucional da Universidade de Fortaleza (Unifor).

Os pesquisadores elaboram projeto para que o humor cearense seja reconhecido como Patrimônio Cultural da Humanidade pela Organização das Nações Unidas (Unesco).
“A ideia surgiu com o propósito de investigar o quanto o patrimônio cultural é próximo do cotidiano das pessoas, dos grupos e da comunidade”, explica o professor Allan Magalhães.

Com essa premissa, foi estruturada uma pesquisa científica para descobrir se o humor enquanto fenômeno social identitário do cearense apresenta os requisitos normativos para a chancela.

O pesquisador explica que o trabalho se baseia na hipótese de que o humor cearense é um fenômeno social detentor de características próprias passível de patrimonialização por meio do registro como patrimônio cultural imaterial.

“A existência de humoristas cearenses conhecidos nacionalmente ajuda a alimentar no senso comum a convicção de que o humor e o fazer rir é inato ao cearense, tanto que os legisladores locais nomearam esse Estado como ‘Ceará, terra do humor’ e apelidaram Fortaleza de ‘capital nacional do humor’. É fato que os humoristas correspondem à dimensão mais visível desta prática coletiva, mas ela está presente fortemente no jeito de ser do cearense, que pode até explicar por que o Ceará é uma ‘fábrica de humoristas’”, detalha Alan.

O pesquisador reafirma que essa condecoração pode fortalecer o cenário da comédia e ajudar os artistas locais. “A busca é por viabilizar ações de salvaguarda como identificação, valorização, documentação, promoção, proteção e transmissão”, conta.

Mas se o humor vier a ser reconhecido como Patrimônio Cultural da Humanidade pela Unesco, como isso de modo prático pode impactar na vida dos artistas do riso? O Vida & Arte conversou com alguns artistas para repercutir a possível chancela.

“Servirá para mostrar para o mundo todo, que nós somos mesmo invocados, e, assim sendo, acredito que aqui mesmo dentro do Ceará, haverá uma maior valorização da cultura do riso”, afirma Jader Soares.

Conhecido pelo personagem Zebrinha, atualmente é diretor do Teatro Chico Anysio e do Museu do Humor Cearense, ele vem acompanhando de perto o projeto de pesquisa encabeçado pelo professor Humberto Cunha, participando de entrevistas, debates sobre o assunto e segue confiante que isso mudará o olhar para o humor cearense no mundo.

Para Jader, como o advento das redes sociais e do stand-up comedy, “todo mundo resolveu ser humorista” no Brasil todo. Mesmo assim, ele defende, o Estado seguiu em evidência.

“Não falo em qualidade de trabalho, mas, sim, na quantidade de gente fazendo ou tentando fazer rir. E, neste cenário, vejo o movimento do humor cearense em um grande momento, em que gente nova divide o palco com gente mais experiente e isso tem dado muito certo. Além de que, é fato, ter surgido muita gente que se garante”, declara.

Em relação às dificuldades que a cena humorística cearense vem enfrentando, o diretor do Teatro Chico Anysio revela que a classe artista passa por alguns desafios pela falta de incentivo do público. E cita que uma delas é não existir um grande Festival de Humor Anual no calendário de programações culturais local.

“Uma das demandas básicas é o lançamento dos Editais das Artes que nos últimos 12 anos não vem sendo cumpridos anualmente, nem pela Prefeitura nem pelo Estado. Às vezes, passamos dois anos sem ter o edital. Também é uma reivindicação constante da categoria, a absorção de shows de humor em eventos públicos, como também em escolas. No caso das escolas, apresentação de humor educativo”, expõe o comediante. 

Se Fortaleza, que é considerada a “capital nacional do humor”, mesmo com lugares próprios para apresentações humorísticas como o Piadaria, Teatro do Humor, Abre-Alas, Aí Dentu e o próprio Teatro Chico Anysio, passa por dificuldades em fazer com que seus artistas sejam mais reconhecidos, o Interior sente esse impacto com mais força.

De Baixio, a 430 Km de Fortaleza, o humorista Bruno Brasileiro conta que não existe um local dedicado ao humor no município e, essa carência cultural de espaço, faz com que muitas pessoas acabem não apreciando as coisas boas que a comédia tem para oferecer.

“O que tem é um espaço dedicado a um grupo de teatro onde eles conseguem fazer a comédia entre eles mesmos. Mas não existe um teatro ou um bar que consiga acolher apresentações. Uma vez eu fi z isso e foi uma coisa bem amadora. No sentido que não estava bem preparado para receber um show de comédia, mas todo mundo queria tanto que a gente deu um jeito de fazer acontecer”, revela o jovem humorista que se mudou para Fortaleza para estudar Engenharia Elétrica, migrou para o Cinema e, na Capital, se apaixonou ainda mais pelo mundo da comédia.

Bruno aproveita o uso das redes sociais para divulgar seu trabalho. No estilo stand-up comedy, o jovem apresenta em seus shows coisas que acontecem no cotidiano: dos aperreios corriqueiros até o primeiro passeio de avião.

Para o criador de conteúdo, o uso das redes sociais é um facilitador que o permite abrir suas próprias portas das oportunidades, no sentido de não ficar refém somente das casas de shows para apresentar seus números.

“Conseguimos fazer essa exploração humorística na própria internet e ver se o público entende e agrega. E aí conseguimos fazer uma carreira não só naquele espaço limitado do bar, mas também em uma amplitude bem maior”, expõe.

Sobre a possibilidade do humor cearense ser reconhecido como Patrimônio Cultural da Humanidade pela Unesco, Bruno é otimista. “Vai agregar muito, pensando no sentido de atrair mais turistas. Se antes, nosso Estado já era muito buscado por essa característica, a procura por noites de comédias aqui só vai aumentar. E também quando um humorista cearense vai se apresentar em outro lugar já é meio que visto com um olhar de respeito e se isso vier acontecer o respeito só tende a aumentar”, declara o humorista que tem como inspiração nomes como Moisés Loureiro, Chico Anysio, Tiririca e Titela.

Artigo do professor Humberto Cunha

Nos dias 13 e 14 de novembro de 2023, participei, no parlamento italiano, de um evento comemorativo dos 20 anos da Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial (PCI) da Humanidade, ocasião em que tive a honra de apresentar um balanço de como o referido pacto internacional vem sendo aplicado na América Latina.

Ao revelar o meu papel, deixo entrever que pessoas de todos os continentes participaram do seminário coordenado pelo dirigente da Cátedra UNESCO sobre PCI e Direito Comparado, o Professor Pier Luigi Petrillo, da Unitelma Sapienza, que já foi presidente do órgão de expertos que avalia as candidaturas apresentadas pelos países.

Tão ricos quanto as palestras foram os contatos de bastidores entre estudiosos que compartilham interesse e paixão pela cultura. Num desses, contei à professora turca Evrim Ölçer da pesquisa que fizemos na Universidade de Fortaleza, no sentido de investigar se a "molecagem" cearense, percebida como modo de relacionamento entre as pessoas, a partir de piadas, insultos amistosos, trocadilhos, exaltação por meio de um falso rebaixamento, poderia ser reconhecida como PCI da Humanidade, pela UNESCO.

Fiquei extremamente surpreso quando a minha interlocutora, que atualmente integra o rol de pareceristas da mencionada agência da ONU, acenou com a possibilidade, em face de já existir uma manifestação muito semelhante na lista dos bens representativos. Fiquei entre maravilhado e incrédulo, desconfiando de alguma falha minha na compreensão do idioma inglês.

Voltando ao Brasil, pesquisei pacientemente e encontrei, inscrita em 2014, a manifestação designada de "Práticas e expressões de relações de gracejos (piadas) no Níger", de cuja descrição se extrai que "elas se manifestam na forma de provocação lúdica entre duas pessoas de duas comunidades que representam os ramos cruzados de primos da mesma família. [...] As relações de brincadeira são praticadas em locais públicos, nos campos, escritórios, mercados, fontes de água e em casa, tanto no dia a dia quanto em ocasiões especiais como casamentos, batismos, cerimônias e funerais, transações comerciais, eventos culturais e de entretenimento. [...] Transmitidas informalmente de geração em geração, as relações de brincadeira são uma ferramenta para reconciliação e construção da paz, promovendo a coesão e estabilidade de famílias, grupos étnicos e comunidades. Elas estimulam a igualdade social em relação à idade e hierarquia, além de promoverem o diálogo intergeracional".

Não difere muito das conclusões inseridas no relatório dos estudos pós-doutorais de Allan Carlos Moreira Magalhães, que sintetizou investigação no âmbito de todo o Grupo de Estudos e Pesquisas em Direitos Culturais: "Já no humor cearense, o comportamento irreverente deste povo sintetizado na expressão 'Ceará moleque', que traduz a ideia 'o que faz ser cearense', confere a esse comportamento uma essência e um fim, algo que se especula como inerente aos processos de sociabilidade, e que se mostra presente, por exemplo, na capacidade do cearense que ri, inclusive, do seu próprio sofrimento".

A primeira boa notícia é que essa inesperada proximidade cultural entre Niger e Ceará, em nada afeta uma possível candidatura do nosso humor, ao contrário, a facilita, porque a UNESCO prioriza mais o que é compartilhado do que aquilo que é exclusivo de um povo, pois isso representa aproximação entre seres humanos, como é o caso da Falconaria (adestramento de falcões), até agora reconhecida para 13 países, tão culturalmente díspares como a França e o Paquistão.

Mais uma boa notícia é que as candidaturas por adesão a bens já reconhecidos para outros países não são contabilizadas para fins de limitar outras candidaturas, ou seja, se o Brasil tem planos de apresentar um outro bem com candidato, em nada essa candidatura é afetada, pois como dito, a prioridade é encontrar pontos comunicantes entre culturas.

Que o nosso humor também seja reconhecido como mensageiro da alegria e da paz.

 

Grupo feminino de humor cearense Maria Bonita Comedy
Grupo feminino de humor cearense Maria Bonita Comedy

Mulheres no Humor

Durante muito tempo o mundo do humor era visto como um espaço majoritariamente masculino permeado de preconceitos. Mas, com o avanço das pautas sociais e o trabalho de nomes como Valeria Vitoriano e Karla Karenina, elas têm conquistado espaços, fazendo com que a comédia ultrapassasse o estereótipo de “clube do Bolinha”.

Prova disso é o grupo Maria Bonita Comedy, que já existe há quatro anos e reúne sete personalidades cearenses. A Idealizadora Patrícia Nassy conta que criar o grupo foi uma iniciativa necessária, visto que a cena de stand up conta com poucas mulheres.

Além de problemas como a disparidade em relação a cachês e dificuldade para conseguir publicidades, a artista revela que chegou a ter trabalhos cancelados porque a casa de shows ficou com medo do que seria abordado no palco.

“Alguns temas saindo da boca das mulheres são vistos como pesado. Mulher não pode falar certos assuntos, não pode se arrumar para fazer show, mulher bonita não é engraçada, saia não é roupa para usar no palco: tudo isso nós já ouvimos”, contrapõe a humorista.

“Temos um show chamado ‘Mulheres de Quinta’ que começa com os absurdos que nós já tivemos que ouvir. Mas eu acho que é nosso papel resistir e continuar ocupando esse lugar para trazer a reflexão de que mulheres podem fazer o que quiserem. Nossa missão é trazer o olhar da mulher também pra comédia”, conta a idealizadora do grupo.

A respeito do humor cearense ser reconhecido como Patrimônio Cultural da Humanidade pela Unesco, a comediante declara que acha importante que isso aconteça pelo valor histórico que ele tem para a cultura brasileira.

“Acredito que esse reconhecimento dê ainda mais luz a essa expressão artística e que, assim, o humor seja visto com mais seriedade do ponto de vista profissional”, expõe.

Para Patrícia Nassy a classe artística da comédia cearense precisa de mais casas de shows para além das famosas já existentes na Beira-Mar, Aldeota e Meireles. Sendo referência para que os comediantes possam se desenvolver e criar materiais para internet, como já acontece em São Paulo.

“Já imaginou, dez comedy clubs em Fortaleza? Espalhados por vários bairros, oferecendo também, emprego e renda para o local. Quem sabe um dia, né?”, projeta, confiante.

Poder público e a relação com a comédia

Sobre ações voltadas ao humor, a Secretaria da Cultura do Ceará (Secult Ceará) pontua, em nota enviada à reportagem, que a modalidade é contemplada pelo Edital das Artes.

“O último edital, lançado em 2023, contou com investimento de R$ 660 mil, distribuídos em três categorias: Pesquisa e Formação, Circulação e Manutenção de Espaços. A Secult Ceará também apoia projetos via Mecenato, como o Terça de Graça que ocorre anualmente em um dos equipamentos da Rede Pública de Espaços e Equipamentos Culturais do Estado do Ceará (Rece) e ainda no Iinterior”, diz a nota.

A Secult afirma ainda que apoia seis escolas livres ligadas ao Circo, por meio do “Edital Artista, Presente!” e que o Theatro José de Alencar sedia o Curso de Iniciação à Palhaçaria, da Academia do Riso.

A Secretaria Municipal da Cultura de Fortaleza não respondeu às demandas da reportagem sobre as ações voltadas ao humor.

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