Vida&Arte é uma casa onde mora a Cidade, o Estado, o País - e também o além-fronteira. Neste 24 de janeiro, a plataforma de cultura do O POVO celebra 35 anos de uma trajetória marcada pela superação de demarcações entre o erudito e o popular, entre o ontem e o amanhã, entre o palco e a rua.
Das páginas impressas às postagens nas redes sociais, a cultura e o entretenimento se horizontalizam num movimento de agrupar linguagens artísticas, temas comportamentais, debates sociais, ações de políticas públicas e tantos outros caminhos da fruição à formação.
O mapa deixado pelo jornalista Ivonilo Praciano, primeiro editor do caderno, indica a rota que segue dando um norte: o artista precisa estar no centro do debate do jornalismo cultural - e, assim, o público leitor se sentirá conectado, espelhado e provocado.
Aqui cabe o Pirambu colorido por Chico da Silva e a Paris desbravada por Antonio Bandeira. O centenário Theatro José de Alencar e a independente Casa Absurda. O Bar Cultural Lions e a galeria Multiarte.
Com os pés no presente e a bagagem do passado, o Vida&Arte projeta para o futuro a renovação do compromisso de seguir sendo endereço certo para o cinema, humor, moda, gastronomia, teatro, dança, música, artes visuais, literatura e todas as esquinas entre as múltiplas formas de viver a cultura.
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Para reconstruir a linha do tempo de um caderno cultural é necessário, principalmente, resgatar a memória coletiva. Fundir distintas referências e vozes também é passo fundamental para concretizar um projeto que nasceu com a proposta de ser "ousado e corajoso". Os adjetivos foram utilizados pelo jornalista Ivonilo Praciano para caracterizar o Vida&Arte em entrevista publicada no ano de 2019, em alusão às três décadas da publicação jornalística. “A marca Vida&Arte consolidou-se através de todos os editores que dela cuidaram e vêm cuidando”, firmou Praciano, gestor pioneiro, na ocasião.
Nesta quarta-feira, 24, o V&A celebra 35 anos e rememora alguns dos perfis que já passaram pelas páginas do jornal. Para além dos personagens e fatos que estamparam as matérias, é preciso, também, olhar para quem esteve por trás da produção das reportagens. Foram dezenas de jornalistas que, a partir de apontamentos e discussões, permearam o caminho para que o caderno pudesse celebrar mais um marco dentro da trajetória iniciada em janeiro de 1989.
A primeira década de formação do V&A foi destinada a alicerçar um "caderno de cultura mais completo possível", como menciona o jornalista Ricardo Jorge, editor do V&A entre 1992 e 1993. Em uma época sem a tecnologia dos computadores e dos celulares, a pesquisa era feita com base nos exemplares impressos de outros jornais e os repórteres tinham ainda mais participação ativa na busca de possíveis materiais para reportagens. "Fortaleza, na época, tinha umas cabeças pensantes interessantes na área da cultura. O secretário de Cultura era o Augusto Pontes, uma pessoa bem dinâmica. Você tinha uma Cidade que tinha uma certa efervescência", opina.
Os eventos também alcançavam outros locais que, hoje, não fazem mais parte da rota cultural da Capital, a exemplo do Ginásio Paulo Sarasate, localizado na rua Idelfonso Albano. Nesta leva de difusão, a proposta era abrir espaço para novos movimentos da cena local com diferentes estilos de texto. "Naquele momento a gente produziu um pouco mais dentro daquela nova geração e todo o movimento pop local que veio depois com mais força", opina o também professor da Universidade Federal do Ceará (UFC). "Acho que o grande lance do caderno é tentar ver quais são as novas possibilidades do percurso da cultura no âmbito local, principalmente. Ele teve muito a cara dos editores que estiveram, de modo geral, à frente do caderno. Cada um incluiu uma marca com as pautas".
Ao longo destas mais de três décadas, 22 profissionais passaram pela chefia do caderno e acompanharam as transições da cobertura jornalística no campo cultural. Uma delas foi a jornalista Regina Ribeiro, que esteve na posição de gestão durante 2004 e 2007. "O jornalismo cultural do O POVO sempre foi muito forte porque passava por pessoas e discussões da cena cultural da Cidade. Eu admirava enquanto leitora e enquanto jornalista também, por pensar esse jornalismo cultural que faz uma tradição da pluralidade".
Cada época teve a própria singularidade impressa no periódico. No início dos anos 2000, a grande mudança foi o crescimento do jornalismo de entretenimento, com aumento do enfoque em programas como o Big Brother Brasil (BBB), e o surgimento das redes sociais, a exemplo do Orkut, MySpace, Twitter, e Facebook. "Cheguei no meio desse fogo cruzado, sem experiência no jornalismo cultural. Houve a formação de uma nova equipe e novos profissionais, pessoas muito antenadas e que produziam muito. A gente precisava botar o caderno na rua todo dia, eu estudava sem parar", destaca Regina.
Ao passo em que o mercado começava a divergir cada vez mais para tópicos mais efêmeros, o V&A buscava oferecer uma leitura imersiva, com foco em análises e registros de experiências. “Algumas pessoas achavam que era muito acadêmico, por provocar umas questões, tensionar outras. A gente tinha um time de analistas, de críticos de literatura, teatro e música. Era uma tensão pela disputa de espaço", acrescenta. O conteúdo, inclusive, não era concentrado em apenas um produto. Também existiam os suplementos que englobavam temas como gastronomia, além de um caderno especial de domingo, com apuração mais profunda, que segue em formato similar até os dias atuais.
Todos os recortes eram pensados para abranger o máximo das linguagens artísticas cearenses, que despontavam artistas como aqueles que compõem o Grupo Bagaceira, mencionados por Regina como uns dos expoentes do período. Para a jornalista, os anos foram marcados por inquietações inerentes ao campo, movimentos que permitem que as pautas possam transitar desde as paradas musicais até as teorias de grandes filósofos. "A cultura é o campo da disputa da ocupação dos espaços, dos discursos, é movimentado mesmo. Por isso acho que foi uma época que eu aprendi e cresci muito como profissional, por ter conseguido lidar com tudo isso junto com uma equipe nova que revelou pessoas. O Vida&Arte consegue traduzir o melhor da cultura da Cidade, é quase uma transfusão cultural genética, todos os editores conseguiram fazer isso de uma forma muito interessante", diz.
Em meio a esses embates inevitáveis dentro de uma redação, o V&A aprendeu a integrar as transformações da comunicação. "Fui chamada para para trazer uma acessibilidade maior, um público maior, trazer para a cultura temas que antes não eram pautados: como cultura pop, games e outros estilos de músicas, de literatura, de cinema, que antes não eram contemplados", explica a jornalista Cinthia Medeiros ao recordar o período que foi editora do caderno entre entre 2015 e 2020.
A entrada de Cinthia demarcou, também, uma fase de ampliar o conteúdo para outras plataformas, sem deixar o impresso perder força - característica que O POVO mantém até os dias de hoje. "A gente foi compreendendo a totalidade do que seria um caderno de cultura. A gente foi entendendo que moda, gastronomia, games, cultura pop, tudo fazia parte daquele espectro". Com produtos como o Vida&Arte Convida - programa de entrevistas - e o Festival Vida&Arte (a última edição aconteceu no ano de 2018), o jornal continuou com a premissa de valorizar o que é feito em terras cearenses.
"A gente começou a entender que, dentro da nossa curadoria, era muito importante dar espaço ao que era produzido localmente, por entender o nosso papel como uma vitrine importante de divulgação desse conteúdo, do trabalho desses artistas. Muitas vezes, nós ouvimos depoimentos desses artistas falando da felicidade deles ao estarem numa reportagem do V&A, era como se estar nas nossas páginas validasse, valorizasse e legitimasse ainda mais o trabalho feito por eles porque tinha nossa curadoria".
Esta troca entre os artistas e aqueles que compunham a equipe do caderno foi o que auxiliou a reinvenção da marca durante a pandemia, um desafio regado de incertezas que não impediu a veiculação e expansão do material. "Eu sempre vou olhar para o Vida&Arte e achar um ato de heroísmo ele existir, da forma que existe, há 35 anos. É um organismo vivo, desde o momento em que foi criado até agora, dentro de todas as transformações que podem ocorrer numa sociedade ao longo de 35 anos. Tem a capacidade de se reinventar todo dia e conseguir manter uma sintonia com o público leitor, acho que esse é o segredo. Pensar num caderno de um cultura, de um jornal que tem 96 anos, num estado nordestino, se manter vivo, não é à toa”.
O V&A chega em “nova idade” sem perder a essência de um projeto corajoso e conquista novos passos no jornalismo multimídia, que engloba temas da atualidade à medida em que prioriza o protagonismo cearense. "Talvez as primeiras décadas tenham sido um momento de protagonismo muito importante para o impresso, o que resulta numa série de capas e de inovações gráficas que marcam o caderno. Quando eu entro, em 2021, tem uma bandeira ainda mais forte de digitalização do nosso trabalho, sem abrir mão do nosso pilar, que é um diálogo direto com artista, com a memória, com a cultura, com a agenda cultural, com a formação artística, com a arte das mais variadas formas", detalha o editor-chefe Renato Abê.
De acordo com o jornalista, a posição atual do produto é uma produção múltipla que é vista como referência para as próximas etapas. "Acho que esse tripé entre público, artista e Vida&Arte se mantém firme e verdadeiro, e espero que continue. Desejo que o V&A continue na vanguarda, apresentando assuntos que são tabus ou apresentando artistas até então desconhecidos. Sempre teve um olho para tentar ver o futuro sem abrir mão do passado", elabora.
Exercício da cultura
"O Vida&Arte foi uma fase muito saudosa, inspiradora e criativa. A gente tinha uma ligação muito grande com a Cidade, mas não tanto quanto tem hoje. Acho fantástico quando escrevemos sobre pessoas, atitudes, em uma visão mais ampla, plural. O mundo mudou, esses 35 anos deram um salto danado daquela época para agora, muitos títulos daquela época sumiram. O Vida&Arte está consumado como uma integridade do jornal, um capítulo que acompanha o O Povo destes 96 anos. É um exercício fantástico de jornalismo sobre a cultura, o comportamento, a vida, como o próprio título já diz".
Depoimento do jornalista Nonato Albuquerque, que esteve no V&A até 1993
Linha do tempo