"Versão brasileira, Herbert Richers". A frase repetida no início de filmes dublados está presente na memória afetiva de quem acompanhava a grade da TV nos anos 1990 e 2000. O anúncio indicava que uma produção audiovisual estrangeira havia recebido marcas da oralidade brasileira.
Em 2024, no entanto, o cenário é outro. Agora, o uso de Inteligência Artificial (IA) para a produção de dublagens ameaça a atuação de profissionais dessa área.
Para implementar a regulamentação do uso de IA, nasce o movimento Dublagem Viva. Organizado por um coletivo de dubladores brasileiros, a ação procura conscientizar o público acerca da relevância de legislações regimentem o uso da tecnologia em produções dubladas.
A campanha foi lançada oficialmente em 19 de janeiro no perfil oficial da causa. Profissionais de todo o País publicaram vídeos com a #DublagemViva.
“Entendemos que a tecnologia é uma ferramenta importante e há muito o que se fazer com ela em diversas áreas. Tanto que o PL 2338/23 que tramita no Senado é marco regulatório para o uso de IA em diversos setores”, explica Angela Couto, conhecida por dar voz à personagem Michonne da série "The Walking Dead".
“No caso do uso no setor de economia criativa é preciso ser monitorado e conhecido até que ponto isso não se torna um risco de dominação e "recolonização" que impede o desenvolvimento da arte e cultura local e imponha padrões culturais de fala porque a versão brasileira não é apenas uma tradução", completa Angela.
O Dublagem Viva vem sendo pensado desde julho de 2023, mas os artistas esperam os desfechos da Greve dos Atores de Hollywood, que também tinha a regulamentação do uso de IA entre as reivindicações para lançar a campanha. Se por um lado, atores lutaram contra o uso indiscriminado de suas imagens por ferramentas de IA por outro aceitaram o uso de suas vozes traduzidas para outras línguas por essas tecnologias.
"No acordo firmado lá (nos EUA), os profissionais podem consentir o uso de suas vozes vertidas para outros idiomas através de sistemas de IA. E isso representa o fim da dublagem no mundo. Outro motivo foi a campanha internacional pela inclusão de uma cláusula de proteção nos contratos de direitos conexos contra o uso indiscriminado de nossas vozes", pontua Couto. A mobilização internacional citada tinha até 1º de janeiro como data limite e no momento a proteção segue em negociação, de acordo com a dubladora.
"Temos variações linguísticas e musicalidades importantes psra identidade de nosso povo. Visamos proteger a soberania Nacional de uma apropriação cultural da nossa Língua que é um de nossos símbolos nacionais. Também queremos proteger nosso direito de manifestar a nossa língua artisticamente considerando todas as peculiaridades linguísticas que a dublagem feita por IA pode impedir que ocorra", salienta Angela.
Os filmes dublados ainda são os favoritos da população brasileira. "Homem-Aranha: Sem volta para casa", que teve grande bilheteria, foi responsável por 82% das vendas dubladas no início de 2022. As produções dos serviços de streaming seguem a mesma linha, "Lupin" (2021), teve 89% de visualizações na versão dublada em português-brasileiro, de acordo com a Netflix.
Usar a tecnologia para gerar uma tradução simultânea pode auxiliar a deixar a dublagem menos perceptível, uma qualidade buscada na boa dublagem. No entanto, a prática acaba retirando características que dão à dublagem um lugar afetivo para o espectador.
"Ao mesmo tempo que falamos que a melhor dublagem é aquela que não é percebida, quando você não percebe que está dublada, porque o trabalho está muito bem feito, é o momento dessas vozes começarem a aparecer, porque nosso trabalho sempre foi meio escondido, ninguém filma a gente para poder mostrar", defende Glauco Marques, dublador do Zoro do anime e série "One Piece”.
“Já me perguntaram como seria o 'One Piece' dublado por uma inteligência artificial, eu falei: 'Olha, One Piece dublado atribui muito as minhas referências desde a minha infância, então, esse neurônio digital, para fazer esse trabalho. Junto, aliado à inteligência artística dos meus colegas, que é a inteligência humana, teria que ser muito, muito estudado e alguém, pacientemente, colocar um neurônio digital para entender todas essas referências, toda a minha vida, que são 38 anos de referências para poder executar dessa forma", ilustra Marques.
Além de ameaçar a atuação de dubladores, o uso indiscriminado de IA pode prejudicar outros profissionais envolvidos nessa área. O movimento Dublagem Viva também surge para assegurar essa cadeira produtiva. "Estamos protegendo o direito do trabalho do cidadão brasileiro. Do direito do Brasil proporcionar trabalho cultural e artístico num setor que arrecada milhões comercializando em nosso território", afirma Angela Couto.
"Existe um sistema de IA, o Deepdub.ia, por exemplo, que pode verter a voz original de um artista em 65 idiomas diferentes. Isto, somado ao acordo firmado pelo Sag-Aftra significa que só com este programa a Dublagem no mundo já deixará de acontecer se não tiver uma legislação em cada país que impeça a exploração comercial sem respeito a legislação", salienta a artista. No Brasil, a dublagem é uma função que só pode ser exercida por atores ou atrizes, conforme a lei nº 6.533/78.
De acordo com Angela, o movimento Dublagem Viva não é contra o uso de IA, mas, sim, utilização indiscriminada que gere prejuízo para os colaboradores desse mercado. Para a dubladora, a IA pode ser usada para auxiliar o trabalho do ator em casos que o personagem envelhece ou para aprimorar a sincronia entre o artista e o personagem que está sendo dublado.
"Muitas vezes trocamos palavras para caber na boca da personagem, mas ela não contém significado muito satisfatório. Às vezes é frustrante que a melhor palavra não caiba no lipsync (sincronização das falas). Tem muito ajuste de pós produção que pode ser feito. Isso seria uma contribuição bem importante", destaca.
"Se o profissional for remunerado pelo uso de sua voz assim é o direito de imagem, outras produções podem ser realizadas com a devida transparência e identificação do dono da voz. Pode haver também uma redução do custo de trabalho, mas o profissional pode ter os direitos de voz compensados e ainda assim viver de seu instrumento. Enfim, o uso precisa ser feito garantindo o respeito a nossa legislação de trabalho de artistas, de direitos autorais e a própria constituição", enfatiza a dubladora.
A regulamentação do uso dessa tecnologia é uma pauta relevante também para as próximas gerações de dubladores, como Lucas Baber, formado em Teatro pela Universidade Federal do Ceará. O artista afirma que com o uso de IA sem regulamentação o faz perder um pouco de esperança em relação a ascender na dublagem. "Principalmente assim, eu que ainda não sou, mas tenho aquele sonho de ser, eu já me sinto que é como se tivesse sonhado tanto e infelizmente não chegaria lá", lamenta.
Dublagem Viva