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Milagre dos Andes: Narrativa sobre sobrevivência e convivência
Vida & Arte

Milagre dos Andes: Narrativa sobre sobrevivência e convivência

Veja quem são e o que fizeram, depois do resgate, os 16 sobreviventes do "milagre nos Andes", a tragédia da aviação que, cinco décadas depois, continua impressionando. Leia também a entrevista que um dos sobreviventes concedeu em 1998 ao O POVO. A tragédia foi levada às telas mais uma vez no filme A sociedade da neve, que recebeu duas indicações ao Oscar 2024
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Os sobreviventes do acidente passaram 72 dias isolados do mundo no Vale das Lágrimas, na cordilheira dos Andes (Foto: Netflix/Divulgação)
Foto: Netflix/Divulgação Os sobreviventes do acidente passaram 72 dias isolados do mundo no Vale das Lágrimas, na cordilheira dos Andes

Havia 45 pessoas no Fairchild FH-227D das Forças Armadas Uruguaias que decolou do aeroporto de Carrasco, em Montevidéu, naquele 12 de outubro de 1972. Eram 5 membros da tripulação e 40 passageiros, dentre os quais 19 integravam a equipe de rugby Old Christians, ligada a um tradicional colégio particular da capital uruguaia. O voo, que não deveria durar muito mais que três horas, foi interrompido duas vezes pelo mau tempo.

A primeira interrupção ocorreu no mesmo dia 12, quando precisou pousar em Mendoza, na Argentina, onde todos passaram a noite; a segunda, no dia seguinte, quando um erro de cálculo dos pilotos, com a visão comprometida pela nebulosidade, fez a aeronave descer enquanto ainda cruzava a cordilheira dos Andes. O avião se chocou contra os picos nevados e começou a se desfazer: primeiro a asa direita, depois a cauda e, por fim, a asa esquerda.

Com a fuselagem rasgada pelo impacto, vários passageiros são ejetados. A aeronave aterrisa em um vale nevado e começa a deslizar a toda velocidade até se chocar contra uma montanha. Às 15h34 minutos, o avião interrompe sua queda. Os sobreviventes, feridos e desorientados, saem do que sobrou da fuselagem e se percebem cercados de neve. Estão no Vale das Lágrimas, uma geleira a quase 4 mil metros de altitude, na fronteira entre Argentina e Chile.

Das 45 pessoas que embarcaram no Fairchild, 17 morreram durante o impacto ou nas horas seguintes ao acidente. Dezesseis dias depois, uma avalanche acaba soterrando outros 8. Ao longo dos 72 dias de espera e luta por sobrevivência, outros 4 passageiros são perdidos. Apenas 16 pessoas escapam da tragédia que, depois, foi chamada de "milagre dos Andes".

Ao longo dos quase dois meses e meio passados no Vale das Lágrimas, os sobreviventes do impacto, atordoados pela violência do acidente, pela depressão, medo e luto, viveram situações extremas que incluíram as temperaturas de até -40 oC e ventanias violentas, a falta de água e de comida e as queimaduras na retina causadas pelo reflexo do sol na imensidão branca de neve.

Na base das estratégias de sobrevivência que planejaram e executaram para contornar cada um desses problemas estava o senso de comunidade e cuidado mútuo que desde o primeiro dia os envolveu. Como afirmou Ramón Sabella — que foi entrevistado pelo O POVO no fim dos anos 1990, eles sabiam que sua sobrevivência dependia dessa união: "Montamos do nada uma sociedade exclusivamente de amizades, abandonada no lugar mais frio do mundo."

Os sobreviventes dos Andes

Nem todos os 16 sobreviventes do acidente com o Fairchild FH-227D faziam parte da equipe de rugby Old Christians. Alguns deles eram amigos dos atletas, enquanto outros viajavam por motivos pessoais, como Javier Methol, que ia para o Chile com a esposa para comemorar o seu aniversário de casamento. Os 72 dias de convivência, porém, estabeleceram entre esses homens uma relação que anulou diferenças e firmou uma sociedade baseada nos afetos.

Conheça a seguir os 16 sobreviventes, quais eram suas responsabilidades nos 72 dias de isolamento que se seguiram ao acidente e o que fizeram depois que foram resgatados: 

 

Conheça os sobreviventes

Fernando Parrado

Era universitário e tinha 22 anos à época do acidente. Durante a queda, sofreu um impacto na cabeça que o deixou inconsciente durante quatro dias.

Roberto Canessa

Com 19 anos, era estudante de medicina. Apesar de estar no início da graduação, foi ele quem socorreu e prestou assistência média aos sobreviventes.

Antonio Vinzintín

Estudante de direito com 19 anos, sobreviveu à queda com duas costelas quebradas e múltiplas contusões.

Gustavo Zerbino

Tinha 19 anos e era estudante de medicina. Saiu praticamente ileso do acidente e assumiu, ao lado de Roberto Canessa, a responsabilidade com o cuidado dos feridos.

Carlos Páez

Era o mais jovem entre os sobreviventes, com 18 anos. Ensinou os companheiros a costurar e era responsável por construir proteções.

José Luis Iniciarte

Tinha 24 anos, era estudante de Engenharia Agrônoma e não integrava a equipe de rugby.

Roy Harley

Estudante de engenharia, tinha 20 anos e viajava de avião pela primeira vez.

Eduardo Strauch

Tinha 25 anos e era estudante de arquitetura. Junto aos primos, assumiu a tarefa de cortar a carne dos companheiros para alimentar os sobreviventes.

Adolfo Stauch

Estudante de engenharia agrônoma, tinha 24 anos e viajava com os primos. Improvisou um óculos de sol e aparelho para derreter gelo.

Daniel Fernández

Estudante de engenharia agrônoma, era um dos passageiros mais velhos, com 27 anos.

Pedro Algorta

Tinha 21 anos, era estudante de economia e não fazia parte da equipe de rugby.

Álvaro Mangino

Aos 19 anos, morava no mesmo bairro de vários membros do time. Quebrou a perna esquerda no acidente.

Javier Methol

Mais velho dos sobreviventes, tinha 36 anos e viajava com sua esposa, Liliana, para celebrar o aniversário de casamento no Chile.

Roberto François

Com 21 anos, foi descrito pelo grupo como alguém com zero instinto de sobrevivência. Foi tomado pelo desânimo e depressão.

Rámon Sabella

Aos 21 anos, não integrava a equipe de rugby e pouco conhecia os outros sobreviventes.

Alfredo Delgado

Estudante de direito, tinha 25 anos e não integrava a equipe de rugby. Sobreviveu ao acidente com feridas graves em uma das pernas, o que não permitiu que se movesse durante os dias de espera.

 

O pós-resgate dos sobreviventes

Fernando Parrado, que perdeu a irmã e a mãe no acidente, abandonou os estudos e, durante um período, trabalhou na cadeia de lojas de ferragens que pertencia à sua família. Simultaneamente, se aventurou no automobilismo, chegando a competir em campeonatos europeus de corrida. Trabalhou ainda como apresentador e produtor de televisão. Por fim, começou a realizar palestras motivacionais. É casado e pai de duas filhas.

Roberto Canessa finalizou sua graduação em medicina e se especializou em cardiologia infantil. Por sua atuação na área, recebeu três vezes o Prêmio Nacional de Medicina. Atualmente é professor de medicina e diretor de um departamento cardiológico no Hospital Italiano de Montevideo. Em 1994 chegou a concorrer à presidência do Uruguai pelo Partido Azul. É casado e tem três filhos.

Antonio Vizintín teve três casamentos e trabalhou em uma importadora de produtos químicos. Gustavo Zerbino seguiu vinculado ao rugby, tendo integrado a seleção nacional, e foi presidente da Câmara de Especialidades Farmacêuticas e Afins do Uruguai. Carlos Páez trabalhou como técnico agropecuário e empresário. Roy Harley trabalhou como fabricante de tintas e teve três filhos, um dos quais também atuou na equipe do Old Christians.

Pedro Algorta finalizou seus estudos em economia e se instalou na Argentina, trabalhando como diretor de uma fábrica de bebidas. Álvaro Mangino se casou com a namorada da época do acidente e viveu durante muitos anos no Brasil antes de retornar a Montevidéu. Roberto François teve três filhos e se tornou produtor agropecuário. Ramón Sabella se mudou para o Paraguai e se tornou empresário. Alfredo Delgado tornou-se dono de um dos cartórios mais importantes do Uruguai.

Dos quatro primos que embarcaram no avião, três sobreviveram. Eduardo Strauch tornou-se um dos mais renomados arquitetos de Montevidéu. Adolfo Strauch se casou, teve três filhos e passou a se dedicar a atividades rurais. Daniel Fernández se casou com sua namorada e com ela teve quatro filhos.

Dos 16 sobreviventes, 2 já faleceram. Javier Methol, o mais velho do grupo, teve oito filhos e faleceu em junho de 2015. José Luis Inciarte se casou com seu amor de infância e se tornou um dos maiores produtores lácteos do Uruguai. Faleceu em julho de 2023.

 

As mulheres

Embora nenhuma das cinco mulheres a bordo do Fairchild 571 tenha retornado para casa, são figuras que merecem menção. Duas mulheres sobreviveram ao acidente, mas acabaram morrendo durante os 72 dias de espera pelo resgate.

Susana Parrado, irmã de Nando Parrado, tinha 20 anos à época do acidente que a deixou gravemente ferida, com grandes hematomas no rosto. Embora estivesse consciente a maior parte do tempo, muitas vezes vivenciava episódios de desorientação, nos quais chamava sua mãe. Foi cuidada pelo irmão até seu último momento, oito dias após a queda do avião.

Liliana Methol, de 34 anos, à época casada com Javier Methol, com quem viajava para o Chile em comemoração ao décimo segundo aniversário de casamento, foi soterrada durante a avalanche. Segundo relatos dos sobreviventes, era ela que, no acampamento, exercia o papel de mãe do grupo, oferecendo consolo aos mais angustiados e auxiliando os estudantes de medicina, como uma espécie de enfermeira.

 

Uma história cinematográfica

A história de tragédia e milagre dos passageiros do voo 571 da Força Aérea Uruguaia foi resgatada em diferentes ocasiões em filmes, documentários, livros, podcasts e exposições. Além das reportagens e adaptações para o cinema, pelo menos sete dos sobreviventes publicaram seus relatos. Outros quatro livros foram escritos por seus familiares. Por mais de cinco décadas, a curiosidade a respeito do caso permaneceu inabalada.

A mais recente adaptação da história foi produzida pela Netflix e estreou em sua plataforma no último em 4 de janeiro de 2024, com direção do cineasta espanhol Juan Antonio Bayona, conhecido por "O impossível", de 2012, que adapta a experiência de outra sobrevivente: María Belón, que escapou do tsunami que devastou a costa da Tailândia em dezembro de 2004.

O filme de Bayona, que vem sendo elogiado pela crítica especializada, alcançou também inesperado sucesso de público, entrando, em poucos dias, para a lista de produções mais vistas da Netflix. Em meados de janeiro de 2024, o longa atingiu 68,3 milhões de horas vistas. A previsão é que o filme suba ainda mais no ranking dos próximos dias. Suas indicações ao Oscar 2024, nas categorias de filme estrangeiro e maquiagem, devem fortalecer essa divulgação.

 

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