Chama atenção que, na terra de José de Alencar, pioneiro do romantismo literário no Brasil e autor de um dos textos fundadores da nação, haja tão pouco espaço para os livros. Ano após ano, acumulam-se histórias de livrarias que fecham as portas e de leitores órfãos desses espaços de difusão cultural e convivência. Há poucos meses, o anúncio do fechamento da livraria Lamarca, no coração intelectual de Fortaleza, encerrou outro capítulo dessa crônica de incertezas.
Localizada em um ponto movimentado da avenida da Universidade, próximo aos Centros de Humanidades da Universidade Federal do Ceará (UFC), onde estão, por exemplo, os cursos de Ciências Sociais, Letras, História e Psicologia, a Lamarca se tornou conhecida sobretudo por sua curadoria dedicada e pela oferta de obras de referências sobre movimentos sociais, política e literatura, sobretudo a produzida por autores locais.
Em entrevista ao O POVO em abril do ano passado, Guarany Oliveira, um dos sócios da Lamarca, resumiu a situação do negócio: “O desafio central é recurso. Financeiro, principalmente”. Quando as contas começaram a entrar em ordem, o Covid-19 reverteu o processo e acelerou a marcha de deterioração das economias. “A pandemia jogou a gente no chão financeiramente”, afirmou na ocasião.
Na última quinta-feira, 11, o telefone da Lamarca respondia aos contatos informando que o estabelecimento seguia aberto, “mas já no processo de, aos poucos, encerrar as atividades enquanto livraria”. Espelhando a trajetória meteórica da figura que, com seu nome, escolheu homenagear, a livraria teve uma existência fugaz e assumidamente militante de oito anos.
A história da Lamarca tem cruzamentos e interseções com a de outra livraria que, na primeira década e meia deste novo século, ofereceu leituras e morada para os debates da intelectualidade ligada à UFC. Localizada no número 2861 da avenida Treze de Maio, em frente ao shopping Benfica, a livraria Lua Nova foi a realização do sonho de uma bancária de carreira transformada em livreira pelo amor aos livros.
“A livraria era meu xodó, minha vida. Me empenhei muito. Era uma coisa que eu gostava e ainda gosto: estar com livros, com autores, com clientes. Além da gente ter todo um cuidado com a seleção dos títulos, a gente tinha uma proposta diferente de trabalhar com editoras universitárias, de dar espaço para textos mais críticos, de desenvolver atividades culturais que incluíam outras linguagens, como o teatro, a música e o cinema”.
A fala é de Eliza Mariano, que fundou a Lua Nova em 2000 e que por dezesseis anos assistiu, resistindo como pôde, às transformações de um mercado que ela não é a única a classificar como “muito difícil”. Somou à boa localização da livraria uma curadoria especializada com foco nas ciências humanas e na literatura, com um olhar especial para poetas, autores locais e representantes da ficção fantástica. Um café e um espaço para eventos - de confrarias a feiras noturnas - completavam o local.
“Mas o livro não é um produto fácil. A gente trabalha com o livro, essencialmente, por amor. Ele tem uma rentabilidade muito pequena, uma margem de lucro mínima. Você precisa de uma rotatividade muito grande para sobreviver”, explica Eliza, que nos anos de ouro da Lua Nova chegou a ter na loja um acervo de 18 mil títulos, número expressivo para uma livraria de bairro (a Lamarca, em abril de 2023, contava com cerca de 14 mil).
Eliza não chegou a sentir o impacto da política predatória de preços da Amazon (que desembarcou no Brasil no fim 2012, comercializando apenas livros digitais, e que se transformou no calcanhar de aquiles do setor), mas enxerga na instalação das primeiras megastores em Fortaleza o golpe definitivo para desagregação de uma estrutura de mercado historicamente fragilizada.
“Quando a (livraria) Cultura chegou, com um acervo enorme e uma estrutura muito bonita, todo mundo migrou pra lá. Eu imaginei que era por causa da novidade, que os clientes tinham ido conhecer o espaço mas que, por conta de nossa proximidade com a UFC, eles aos poucos retornariam”, relembra Eliza. “Mas a realidade foi que não retornaram, e aí a coisa foi ficando difícil”.
Inaugurada em junho de 2010 no cruzamento entre as avenidas Dom Luís e Virgílio Távora, a megastore da livraria Cultura tinha 2 mil m2 que abrigavam, além de livros, revistas, CDs, DVDs, LPs e jogos, um café e um auditório para 100 pessoas. Na solenidade de abertura, uma banda de jazz tocava releituras de Tom Jobim, Duke Ellington e Glenn Miller enquanto o público era recebido com taças de espumante.
No universo literário dos anos 2010, foram as megastores (Cultura, Saraiva e Leitura) que concentraram a maior parte dos eventos artísticos e de lançamento de livros de Fortaleza. As lojas, que ofereciam com seus imensos acervos uma experiência cultural de variadas linguagens, se transformaram em ponto de encontro. Seus cafés estavam sempre cheios. As grandes editoras, concentradas no eixo Rio-São Paulo, passaram a incluir a capital cearense na turnê de divulgação de seus autores.
“Em 16 anos, nunca recebi um livro doado como divulgação pelas editoras. Tudo era sempre vendido. Não existia uma política de promoção. Mais que isso, por mais que você tentasse, não conseguia dialogar com elas”, conta Eliza, da Lua Nova, que observou, não sem surpresa, a consolidação de um diálogo entre as megastores de Fortaleza e as casas editoriais do Sudeste.
Esse novo momento de grandes estruturas e oferta quase infinita de produtos foi acompanhado pela chegada discreta da Amazon no Brasil, em 2012, comercializando apenas livros digitais como estratégia de estabelecimento no mercado de seu e-reader próprio, o Kindle. Dois anos depois, a empresa começou a oferecer títulos impressos - 150 mil livros em português, à distância de um clique e com preço consideravelmente inferior ao praticado pelas livrarias.
Foi a vez das megastores sentirem o baque que, pouco tempo antes, haviam infligido às livrarias de bairro. Os descontos fabulosos (e, como mais tarde descobriríamos, artificiais) oferecidos aos leitores pela Amazon acabaram gerando um sismo violento que foi percebido, em diferentes graus, por autores, editores, distribuidores e livreiros. Algumas das grandes lojas, interessadas em reproduzir o modelo de venda virtual arquitetado pela concorrente estrangeira, acabaram vitimadas pela própria ambição.
“O problema dessas grandes lojas é que elas quiseram dominar a internet. Foram crescendo, mas vendendo com prejuízo. Vendiam muito, mas abaixo do custo. Claro que uma hora a conta chega”, analisa o empresário Marcus Teles, presidente da Leitura, que encerrou 2023 como a maior rede de livrarias do Brasil. São 110 lojas espalhadas por 22 estados das cinco regiões do País.
A análise de Teles para a situação de agonia em praça pública vivida pelas livrarias Cultura e Saraiva (que entraram em recuperação judicial em 2018) se baseia na observação dos esforços que as duas lojas empreenderam no sentido de ampliar sua presença no e-commerce a partir da concessão de grandes descontos que, muitas vezes, impediam qualquer margem de lucro.
O modelo a ser seguido era o da gigante de Jeff Bezos. “Mas Amazon tem outro caixa pra conseguir vender com prejuízo, não é verdade?", questiona Teles. Segundo o empresário - em avaliação respaldada por outros representantes do setor -, a Amazon é capaz de oferecer esses descontos artificiais porque sua relação com os livros seria guiada por uma espécie de utilitarismo tacanho. “Ela usa o livro como porta de entrada, como boi de piranha”, argumenta.
Atual presidente da Associação Nacional de Livrarias (ANL), Alexandre Martins Fontes - que como o nome sugere é diretor-executivo da livraria Martins Fontes, uma das mais charmosas de São Paulo - observa o cenário pela mesma ótica: “Como é que a Amazon paga suas contas vendendo livros por preços muitas vezes abaixo do preço de custo? A resposta que posso te dar com absoluta certeza é que ela não ganha dinheiro assim”.
Segundo Alexandre, o que interessa à gigante das vendas é o estabelecimento de uma relação duradoura (e onerosa) com cliente. Os livros - produto consumido, no Brasil, sobretudo pelas classes A, B e C - seriam a estratégia inicial desse jogo de sedução. Os clientes chegariam à Amazon à procura de livros e, depois de ceder seus dados, acabariam topando com uma infinidade de produtos dos mais variados segmentos, dos eletrônicos ao vestuário, dos itens para pets aos objetos de decoração.
“O problema dessas grandes lojas (Cultura e Saraiva) foi interno. Não tem empresa no mundo que sobreviva a desmandos e decisões erradas”, afirma o presidente da ANL. O processo público de derrocada das duas empresas - justificado, na visão de Teles, pela tentativa malfadada de emulação dos métodos da Amazon - se soma ao emaranhado de revoluções geradas, direta ou indiretamente, pela política predatória da empresa no Brasil.
“Pra gente ter um mercado saudável, as editoras, as distribuidoras, os livreiros, todos esses players precisam ter uma razão de existir. A Amazon - e não é só ela, mas todos os que seguem esse modelo -, ao fazer o que faz, acaba destruindo o ecossistema do livro”, observa Alexandre, abrindo espaço para a discussão sobre o que ele aponta como estratégia fundamental para a recuperação desse organismo: a regulação de preços.
Uma das estratégias de enfrentamento à concorrência poderosa dessas grandes empresas é o projeto de lei (PL) apresentado em 2015 pela então senadora Fátima Bezerra, atual governadora do Rio Grande do Norte pelo PT. Conhecido como Lei Cortez - uma homenagem ao histórico editor José Xavier Cortez, fundador da editora que leva seu nome -, o projeto vem gerando polêmica desde que começou a circular no Senado.
Segundo representantes do setor livreiro, as controvérsias geradas em torno do projeto estão ligadas mais à incompreensão do que está sendo proposto do que, propriamente, ao objeto da matéria. Colabora com essa impressão equivocada o texto inicial do projeto, que afirma, eu seu artigo primeiro: “Esta lei institui a política nacional de fixação do preço do livro em todos os seus formatos”.
A sugestão de uma política de regulação de preços assusta. “Quando as pessoas escutam isso, boa parte reage falando de controle de preços e de descontos, e se diz contra. Mas o texto precisa ser entendido em sua profundidade. Na verdade, a lei vai regulamentar somente o descontos dos lançamentos, que equivalem a apenas 6% daquilo que está à disposição do consumidor brasileiro”, explica Alexandre Martins Fontes, da ANL.
O texto do projeto de lei confirma, de forma categórica, essa informação. Também estabelece que essa regulação dos lançamentos terá duração de apenas um ano. “Todo livro, sob edição nacional ou importada, receberá da editora precificação única por prazo determinado de 1 (um) ano, a partir de seu lançamento ou importação”, afirma o artigo 3o do PL. Em seguida, no artigo 7o, acrescenta que será livre a fixação de preços após o prazo estipulado.
Caso aprovado, o projeto obrigaria empresas e livreiros, com lojas físicas ou digitais, a oferecer desconto fixo de não mais de 10% do valor de capa durante um ano após o lançamento da obra. Os descontos astronômicos oferecidos, por exemplo, pela Amazon, precisariam se readequar para corresponder ao valor aplicado em todas as lojas. O descumprimento da regulação é passível de punição com multas.
“O lançamento, a novidade, é aquilo que leva as pessoas às livrarias. No momento em que a pessoa pensa que pode comprar esse lançamento em outro lugar com um preço muito mais baixo, essa pessoa deixa de frequentar a livraria. Essa lei vem para permitir que os livreiros tenham oportunidade de sobreviver”, avalia Alexandre.
O projeto de leite vem sendo discutido, desde sua apresentação em 2015, em diferentes instâncias do senado e da sociedade civil. Em julho de 2022, o então senador Jean Paul Prates (PT/RN) apresentou relatório favorável ao projeto, que pouco tempo depois foi aprovado pela Comissão de Assuntos Econômicos (CAE). O documento agora está na Comissão de Educação e Cultura, onde, em outubro do ano passado, foi tema de debate em uma audiência pública.
Dispositivos legais que asseguram a regulação de preços de livros durante um período específico após o seu lançamento são realidade em diversos países. Na França, onde a discussão sobre o tema remonta pelo menos até meados da década de 1970 (quando o papel hoje desempenhado pela Amazon era cumprido, em menor escala, pelos supermercados), foi promulgada em 1981 a Lei Lang, ainda mais radical que a proposta brasileira.
Segundo ela, o comércio varejista deve oferecer descontos máximos de 5% na venda ao consumidor final durante o período de dois anos após o lançamento do livro. Na Alemanha, a regulação existe desde 2002. Na Espanha, foi instituída em 2007. Em Portugal e na Itália, onde existe desde 1996 e 2005, respectivamente, os descontos máximos autorizados são um pouco maiores, podendo chegar até 20% no caso de vendas realizadas para bibliotecas.
Dados divulgados por pesquisadores do mercado editorial em 2021, na ocasião de seminário realizado pela Liga Brasileira de Editoras (Libre), apontam que, na Europa, legislações específicas de regulação acabaram protegendo as livrarias independentes. No Reino Unido, onde a lei foi abandonada em 1995, essas lojas praticamente desapareceram (hoje são cerca de 5%), sendo substituídas pelas grandes cadeias e, depois, pela Amazon.
Além disso, os dispositivos regulatórios teriam evitado, inclusive, a subida de preços dos livros nos países que os adotaram. O diretor da consultoria francesa KOS Research, Markus Gerlach, apontou, durante o evento, que enquanto na Alemanha e na França o aumento no preço médio do livro foi de 29% e 24%, respectivamente, no Reino Unido o acréscimo foi de 80%.
“A ideia não é criar um problema para a Amazon, mas proteger os pequenos livreiros e fortalecer as empresas que vivem única e exclusivamente da venda de livros. Essa é a questão”, argumenta o presidente da ANL, que cita ainda o exemplo do México, onde sua Lei de Fomento para a Leitura e o Livro, promulgada em 2008, está sendo revisada para duplicar de 18 para 36 meses o período de aplicação do preço único dos lançamentos.
Na América do Sul, nossos vizinhos argentinos possuem, desde 2001, uma Lei de Defesa da Atividade Livreira, que vem sendo fundamental para a permanência no mercado das livrarias independentes. Estimativas do setor apontam que a Argentina registrou, desde a aprovação da lei, um acréscimo de mais de 100% na quantidade de livrarias e de cerca de 300% no número de selos e editoras independentes.
Esse panorama vem sendo colocado em cheque pelo presidente recém-eleito da Argentina, o conservador Javier Milei, que incluiu em seus planos radicais de reestruturação a revogação da Lei de Defesa da Atividade Livreira. Milei apresentou, ainda em 2023, um projeto que chamou de “Bases e pontos de partida para a liberdade dos argentinos”. O documento, que indica a existência de uma crise nacional “sem precedentes” no país, inclui em suas proposições a eliminação absoluta da regulação do preço dos livros.
“Buenos Aires é uma cidade que agora está cheia de livrarias de todos os tipos”, afirma o livreiro colombiano radicado na Argentina Irving Moncada, dono da Gould Libros. A loja foi inaugurada há oito anos em Villa Crespo, um pequeno bairro da capital portenha no qual existiam, no início da década passada, “duas ou três livrarias”, e que hoje tem “seguramente mais de dez”.
Moncada argumenta, a partir de sua experiência com o mercado editorial de outros países de língua espanhola no continente, que a relação dos argentinos com os livros, com a escrita e com a linguagem “funciona de uma forma muito particular”. Nesse cenário, que ele chama de “boom editorial”, merece destaque o surgimento de novas editoras independentes, muitas delas dedicadas a nichos e temas específicos, como as voltadas para cultura afro ou para a tradução de literatura coreana.
De acordo com dados levantados pelo World Cities Culture Forum, que compila informações sobre aspectos culturais das maiores capitais do planeta, há 615 livrarias em Buenos Aires. Em São Paulo são 1.241 lojas. A diferença pode parecer favorável para a cidade brasileira, mas quando os números são observados levando em conta as respectivas populações, o cenário se inverte.
Enquanto em Buenos Aires há 20,1 livrarias para cada 100 mil habitantes, em São Paulo, em relação à mesma fatia de população, são apenas 10 lojas. A capital argentina é a quinta capital com mais livrarias, em termos proporcionais, de no ranking geral, aparecendo à frente de metrópoles como Barcelona (19,8), Abu Dhabi (15), Toronto (12,4), Amsterdam (11,5) e Tóquio (11,41). No topo da lista aparece Lisboa, com 35,97 livrarias a cada 100 mil habitantes.
Fortaleza conta, de acordo com levantamento divulgado na edição 2023 do Anuário Nacional de Livrarias, com 57 lojas dedicadas aos livros. Se o número parece exagerado é porque o documento inclui nessa contabilidade, além de livrarias (gerais ou especializadas, como as religiosas e de livros didáticos), papelarias e distribuidoras que, entre outras atividades, também comercializam livros. São menos de 3 livrarias a cada 100 mil habitantes.
Embora o cenário das livrarias em Fortaleza e no Ceará não seja o mais exuberante, há indicadores importantes que não podem ser desconsiderados. De acordo com dados obtidos por O POVO+ junto à Biblioteca Pública Estadual do Ceará (Bece), houve crescimento considerável, entre os anos de 2022 e 2023, no público que acessou a estrutura gerida em parceria com o Instituto Dragão do Mar.
As 91.450 visitas de 2022 foram ampliadas, no ano passado, para 114.240, um crescimento de quase 25%. Quando esse número é filtrado para permitir a observação do público infantil, o incremento é levemente mais pronunciado, de 26% entre os dois anos, passando de 11.594 visitantes para 14.682. Esse maior fluxo de visitantes também se traduz em crescimento no número de livros emprestados. Os 17.394 aluguéis de 2022 transformaram-se, em 2023, em 22.792, crescimento de 31%.
Quem também aposta nessa retomada do cenário da leitura e dos livros em Fortaleza é o empresário mineiro Marcus Teles, da Leitura, que atualmente é a maior rede de livrarias do Brasil. No fim do ano passado foi inaugurada na capital cearense a quarta loja da marca, uma megastore com dois pisos e área total de mais de mil metros quadrados no shopping Iguatemi.
“Nós estamos muito satisfeitos com o Ceará, tanto que já estamos pensando em abrir a quinta loja”, afirma Marcus, que não avalia o mercado local como o mais desafiador. “A questão da busca pela leitura tem a ver com a escolaridade e o nível de educação de um lugar, e o Ceará tem as melhores escolas do Brasil”, argumenta. Segundo M o empresário, das dez lojas mais lucrativas da Leitura (de um total de 110 unidades espalhadas por todas as regiões do Brasil), duas estão em Fortaleza.
“O cliente vai à livraria também à procura de uma experiência, uma descoberta. É a curadoria e os funcionários que vão saber indicar novas leituras. É a troca de ideia com outras pessoas. São os lançamentos com os autores. São os eventos. É isso o que faz com que as pessoas continuem frequentando”, avalia ele, que não descarta a possibilidade de abrir novas unidades da Leitura no interior do Estado.
Economia do excesso
Inaugurada em junho de 2010 no cruzamento entre as avenidas Dom Luís e Virgílio Távora, a megastore da livraria Cultura tinha 2 mil m2 que abrigavam, além de livros, revistas, CDs, DVDs, LPs e jogos, um café e um auditório para 100 pessoas. Na solenidade de abertura, uma banda de jazz tocava releituras de Tom Jobim, Duke Ellington e Glenn Miller enquanto o público era recebido com taças de espumante.
No universo literário dos anos 2010, foram as megastores (Cultura, Saraiva e Leitura) que concentraram a maior parte dos eventos artísticos e de lançamento de livros de Fortaleza. As lojas, que ofereciam com seus imensos acervos uma experiência cultural de variadas linguagens, se transformaram em ponto de encontro. Seus cafés estavam sempre cheios. As grandes editoras, concentradas no eixo Rio-São Paulo, passaram a incluir a capital cearense na turnê de divulgação de seus autores.
"Em 16 anos, nunca recebi um livro doado como divulgação pelas editoras. Tudo era sempre vendido. Não existia uma política de promoção. Mais que isso, por mais que você tentasse, não conseguia dialogar com elas", conta Eliza, da Lua Nova, que observou, não sem surpresa, a consolidação de um diálogo entre as megastores de Fortaleza e as casas editoriais do Sudeste.
Esse novo momento de grandes estruturas e oferta quase infinita de produtos foi acompanhado pela chegada discreta da Amazon no Brasil, em 2012, comercializando apenas livros digitais como estratégia de estabelecimento no mercado de seu e-reader próprio, o Kindle. Dois anos depois, a empresa começou a oferecer títulos impressos - 150 mil livros em português, à distância de um clique e com preço consideravelmente inferior ao praticado pelas livrarias.
Foi a vez das megastores sentirem o baque que, pouco tempo antes, haviam infligido às livrarias de bairro. Os descontos fabulosos (e, como mais tarde descobriríamos, artificiais) oferecidos aos leitores pela Amazon acabaram gerando um sismo violento que foi percebido, em diferentes graus, por autores, editores, distribuidores e livreiros. Algumas das grandes lojas, interessadas em reproduzir o modelo de venda virtual arquitetado pela concorrente estrangeira, acabaram vitimadas pela própria ambição.
O paradoxo dos descontos
"O problema dessas grandes lojas é que elas quiseram dominar a internet. Foram crescendo, mas vendendo com prejuízo. Vendiam muito, mas abaixo do custo. Claro que uma hora a conta chega", analisa o empresário Marcus Teles, presidente da Leitura, que encerrou 2023 como a maior rede de livrarias do Brasil. São 110 lojas espalhadas por 22 estados das cinco regiões do País.
A análise de Teles para a situação de agonia em praça pública vivida pelas livrarias Cultura e Saraiva (que entraram em recuperação judicial em 2018) se baseia na observação dos esforços que as duas lojas empreenderam no sentido de ampliar sua presença no e-commerce a partir da concessão de grandes descontos que, muitas vezes, impediam qualquer margem de lucro.
O modelo a ser seguido era o da gigante de Jeff Bezos. "Mas Amazon tem outro caixa pra conseguir vender com prejuízo, não é verdade?", questiona Teles. Segundo o empresário - em avaliação respaldada por outros representantes do setor -, a Amazon é capaz de oferecer esses descontos artificiais porque sua relação com os livros seria guiada por uma espécie de utilitarismo tacanho. "Ela usa o livro como porta de entrada, como boi de piranha", argumenta.
Atual presidente da Associação Nacional de Livrarias (ANL), Alexandre Martins Fontes - que como o nome sugere é diretor-executivo da livraria Martins Fontes - observa o cenário pela mesma ótica: "Como é que a Amazon paga suas contas vendendo livros por preços muitas vezes abaixo do preço de custo? A resposta que posso te dar com absoluta certeza é que ela não ganha dinheiro assim".
Segundo Alexandre, o que interessa à gigante das vendas é o estabelecimento de uma relação duradoura (e onerosa) com cliente. Os livros - produto consumido, no Brasil, sobretudo pelas classes A, B e C - seriam a estratégia inicial desse jogo de sedução. Os clientes chegariam à Amazon à procura de livros e, depois de ceder seus dados, acabariam topando com uma infinidade de produtos dos mais variados segmentos.
"O problema dessas grandes lojas (Cultura e Saraiva) foi interno. Não tem empresa no mundo que sobreviva a desmandos e decisões erradas", afirma o presidente da ANL. O processo público de derrocada das duas empresas - justificado, na visão de Teles, pela tentativa malfadada de emulação dos métodos da Amazon - se soma ao emaranhado de revoluções geradas, direta ou indiretamente, pela política predatória da empresa no Brasil.
"Pra gente ter um mercado saudável, as editoras, as distribuidoras, os livreiros, todos esses players precisam ter uma razão de existir. A Amazon - e não é só ela, mas todos os que seguem esse modelo -, ao fazer o que faz, acaba destruindo o ecossistema do livro", observa Alexandre, abrindo espaço para a discussão sobre o que ele aponta como estratégia fundamental para a recuperação desse organismo: a regulação de preços.
Antigo projeto, polêmica nova
Uma das estratégias de enfrentamento à concorrência poderosa dessas grandes empresas é o projeto de lei (PL) apresentado em 2015 pela então senadora Fátima Bezerra, atual governadora do Rio Grande do Norte pelo PT. Conhecido como Lei Cortez - uma homenagem ao histórico editor José Xavier Cortez, fundador da editora que leva seu nome -, o projeto vem gerando polêmica desde que começou a circular no Senado.
Segundo representantes do setor livreiro, as controvérsias geradas em torno do projeto estão ligadas mais à incompreensão do que está sendo proposto do que, propriamente, ao objeto da matéria. Colabora com essa impressão equivocada o texto inicial do projeto, que afirma, eu seu artigo primeiro: "Esta lei institui a política nacional de fixação do preço do livro em todos os seus formatos".
A sugestão de uma política de regulação de preços assusta. "Quando as pessoas escutam isso, boa parte reage falando de controle de preços e de descontos, e se diz contra. Mas o texto precisa ser entendido em sua profundidade. Na verdade, a lei vai regulamentar somente o descontos dos lançamentos, que equivalem a apenas 6% daquilo que está à disposição do consumidor brasileiro", explica Alexandre Martins Fontes, da ANL.
O texto do projeto de lei confirma, de forma categórica, essa informação. Também estabelece que essa regulação dos lançamentos terá duração de apenas um ano. "Todo livro, sob edição nacional ou importada, receberá da editora precificação única por prazo determinado de 1 (um) ano, a partir de seu lançamento ou importação", afirma o artigo 3o do PL. Em seguida, no artigo 7o, acrescenta que será livre a fixação de preços após o prazo estipulado.
Caso aprovado, o projeto obrigaria empresas e livreiros, com lojas físicas ou digitais, a oferecer desconto fixo de não mais de 10% do valor de capa durante um ano após o lançamento da obra. O descumprimento da regulação é passível de punição com multas.
"O lançamento, a novidade, é aquilo que leva as pessoas às livrarias. No momento em que a pessoa pensa que pode comprar esse lançamento em outro lugar com um preço muito mais baixo, essa pessoa deixa de frequentar a livraria", avalia Alexandre.
O projeto de lei vem sendo discutido, desde sua apresentação em 2015, em diferentes instâncias do senado e da sociedade civil. O documento agora está na Comissão de Educação e Cultura, onde, em outubro do ano passado, foi tema de debate.
Novos ventos para o Ceará
Embora o cenário das livrarias em Fortaleza e no Ceará não seja o mais exuberante, há indicadores importantes que não podem ser desconsiderados. De acordo com dados obtidos por O POVO junto à Biblioteca Pública Estadual do Ceará (Bece), houve crescimento considerável, entre os anos de 2022 e 2023, no público que acessou a estrutura gerida em parceria com o Instituto Dragão do Mar.
As 91.450 visitas de 2022 foram ampliadas, no ano passado, para 114.240, um crescimento de quase 25%. Quando esse número é filtrado para permitir a observação do público infantil, o incremento é levemente mais pronunciado, de 26% entre os dois anos, passando de 11.594 visitantes para 14.682. Esse maior fluxo de visitantes também se traduz em crescimento no número de livros emprestados. Os 17.394 aluguéis de 2022 transformaram-se, em 2023, em 22.792, crescimento de 31%.
Quem também aposta nessa retomada do cenário da leitura e dos livros em Fortaleza é o empresário mineiro Marcus Teles, da Leitura, que atualmente é a maior rede de livrarias do Brasil. No fim do ano passado foi inaugurada na capital cearense a quarta loja da marca, uma megastore com dois pisos e área total de mais de mil metros quadrados no shopping Iguatemi.
"Nós estamos muito satisfeitos com o Ceará, tanto que já estamos pensando em abrir a quinta loja", afirma Marcus, que não avalia o mercado local como o mais desafiador. "A questão da busca pela leitura tem a ver com a escolaridade e o nível de educação de um lugar, e o Ceará tem as melhores escolas do Brasil", argumenta. Segundo o empresário, das dez lojas mais lucrativas da Leitura (de um total de 110 unidades espalhadas por todas as regiões do Brasil), duas estão em Fortaleza.
"O cliente vai à livraria também à procura de uma experiência, uma descoberta. É a curadoria e os funcionários que vão saber indicar novas leituras. É a troca de ideia com outras pessoas. É isso o que faz com que as pessoas continuem frequentando", avalia ele, que não descarta a possibilidade de abrir novas unidades da Leitura no interior do Estado.