Marcos Lessa ainda tem nítida em sua memória a lembrança de quando se deparou pela primeira vez com uma voz que teria grande influência no curso artístico de sua vida. Criança, estava em casa e ouviu uma música tocar no equipamento de som de seu pai. A canção? “Águas de Março”.
“Eu fiquei completamente encantado com a voz dela. Ela começou a cantar e eu fiquei paralisado. Quando terminou, gravei aquele nome para sempre. Meu pai tinha muitos discos e comecei um processo quase ‘beatlemaníaco’. Fiquei fanático mesmo por ela. Na época já existia o YouTube, era internet discada e eu saí procurando tudo com 10, 11 anos de idade”, lembra.
“Ela”, no caso, é uma cantora que nasceu no Rio Grande do Sul e se eternizou como uma das principais intérpretes da história do Brasil: Elis Regina. Sem poupar adjetivos, o cearense caracteriza a artista como a maior que este País já teve e diretamente responsável pelo seu ingresso no mundo dos vocais. “Meu amor pela Elis foi o que me fez querer ser cantor mesmo. A música já tinha presença muito forte lá em casa, mas eu querer ser cantor e não instrumentista foi devido à paixão pela Elis”, confessa.
Essa paixão, aliás, é a grande impulsionadora do projeto “mais ousado” dos 16 anos de carreira de Marcos Lessa, que já foi semifinalista do The Voice Brasil. Em 12 de abril, o cearense apresenta no Teatro RioMar Fortaleza o show “Saudades do Brasil” em homenagem à “Pimentinha”. Os ingressos estão à venda.
“Para você fazer um tributo à maior cantora do Brasil tem que ser muito ousado mesmo. Ousar executar as músicas que ela executou, como ela fez, é muita ousadia da minha parte… Mas é coisa de fã”, conta Lessa, que recebeu o Vida&Arte no saguão do Hotel Gran Marquise para compartilhar os detalhes da apresentação.
O show tem direção musical do pianista Tito Freitas e do violonista Eduardo Holanda, com direção artística de Marcos Lessa. No palco, ele estará acompanhado não só de Freitas e de Holanda, mas de Hoto Jr (percussão), Adriano Azevedo (bateria), Miquéias dos Santos (contrabaixo), Sávio Dieb (teclado), Foguinho (trompete) e Glauber Ferreira (saxofone).
O cantor se considera um pesquisador da obra de Elis Regina, com conhecimento sobre as diferentes fases da carreira da gaúcha e as técnicas utilizadas pela intérprete. Ele admite ter “demorado muito a fazer um tributo a ela”, mas só faria quando tivesse certeza de que estaria à altura de seu legado.
O espetáculo revisita as canções gravadas por Elis em seus 20 anos de carreira, com transcrição dos arranjos originais para dar fidelidade à estética musical dada pela cantora à sua obra. O repertório, que reúne canções como “Fascinação” e “Aos Nossos Filhos”, é mesclado com trechos de entrevistas da intérprete.
A seleção das músicas seguiu um critério cronológico e o desejo de transmitir ao público “o que mais representa Elis Regina”. Em cerca de duas horas de show e 30 canções, Marcos Lessa também estará trajado com uma adaptação feita pelo cearense Lucas Scott do último figurino usado por Elis Regina na sua última turnê “Trem Azul”.
Todas as faixas do repertório são especiais para Marcos Lessa, mas há uma que se sobressai: “Se Eu Quiser Falar Com Deus”. “É a música que mais me representa. Para se ter contato com Deus ou algo superior realmente tem que ralar muito. A canção fala isso. Se eu quiser falar com Deus tenho que ficar a sós, apagar a luz, lamber o chão dos palácios, comer o pão que o diabo amassou… É aquela história: para ser feliz tem que ter muita luta. É o que estou passando hoje na minha vida pessoal”, relata.
A ideia do show é proporcionar o máximo de fidelidade à obra de Elis Regina. Mas, afinal, o que terá de Marcos Lessa na interpretação? “Só em ser um cantor homem e revisitar o repertório e os arranjos de uma cantora mulher já dá a minha cara. É muito ousado falar isso, porque a Elis é incomparável, para mim não tem outra, mas é como se fosse a interpretação da Elis em uma voz grave”, explica.
O nome do espetáculo faz referência ao “Saudade do Brasil”, álbum duplo lançado em 1980 por Elis Regina, mas também se conecta com o sentimento de nostalgia de Marcos Lessa quanto à cena musical do País nas décadas anteriores.
“Eu hoje estou me tornando cada vez mais um cantor comercial. Isso me incomoda um pouco, porque comecei minha carreira há 16 anos e naquela época não imaginava que precisaria cantar axé para vender show. Hoje eu até gosto de axé, mas queria ter ficado famoso no Brasil cantando Bossa Nova. É uma linha muito tênue entre você ter a sua identidade e não poder ficar ultrapassado, porque senão eu faço outra coisa”, reflete.
“Eu me adaptei aos novos tempos, sou muito respeitoso com os estilos musicais, mas tenho saudade desse Brasil em que Elis Regina cantava Belchior no horário nobre. Eu tenho saudade de um Brasil em que a música mais tocada na rádio era ‘O Bêbado e o Equilibrista’, um hino da anistia. Então, não posso ser mentiroso só para ‘ficar bem na fita’, porque eu tenho saudade desse Brasil. São pessoas que também estão cada vez mais ‘órfãs’ desse tipo de espetáculo, bem pensado, com cuidado com o roteiro”, acrescenta.
Marcos promete uma noite de muitas emoções no próximo dia 12 de abril. A estrada começa nesta semana, quando serão iniciados os ensaios.
Saudades do Brasil
Lessa e a União do Vegetal
Na entrevista, Marcos Lessa também discorreu sobre ter sido vítima de homofobia em uma unidade do Centro Espírita Beneficente União do Vegetal (UDV). Em novembro de 2023, o cantor fez uma publicação na qual detalhou que o caso ocorreu na unidade Cariri. Jair Gabriel, mestre geral representante do Centro, teria comentado sobre a orientação sexual do artista: “Cuidado que o Marcos Lessa começou assim”.
Na época, Lessa caracterizou a fala de Jair Gabriel como feita sob “o pretexto de debochar de um irmão ao insinuar homossexualidade”. Ao O POVO, o cantor destaca que “construiu a sua personalidade” na UDV e lembra que seus pais se conheceram na instituição. Fundada por José Gabriel da Costa, o Mestre Gabriel, a UDV é uma religião de fundamentação cristã e reencarnacionista que usa em seu ritual o chá ayahuasca, também chamado de Vegetal. Os discípulos bebem durante as sessões para “efeito de concentração mental”.
A UDV busca contribuir “para o desenvolvimento espiritual do ser humano, de suas qualidades intelectuais e de suas virtudes morais” e defende que não haja “distinção de raça, sexo, credo, condição social ou nacionalidade”. Lessa destaca que Mestre Gabriel “nunca pregou qualquer discurso de preconceito” e aponta que foi “banido” da religião em setembro devido à sua sexualidade. Inicialmente, “ficou quieto”, mas com o caso de homofobia em novembro decidiu se defender publicamente.
“Eu tive muito medo até que eu assumisse minha sexualidade, e quando assumi houve pressão por parte de algumas pessoas de que eu saísse da UDV. Eu era considerado um ‘risco’ para os jovens, um ‘mau exemplo’, quando eu só fiz o que aprendi lá: falar a verdade e não sonegar a mim mesmo. Cansei de me sonegar e me assumi verdadeiramente como sou. Sou uma pessoa muito feliz, meu noivo é uma pessoa maravilhosa e me considero no direito de construir uma família com ele”, afirma.
O cantor cearense enfatiza que a UDV é um lugar acolhedor, mas atualmente a “cúpula de comando” é formada por pessoas “que estão tendo atitudes completamente exclusivas” que não condizem com a religião. “A resposta deles a esse vídeo foi me proibir de frequentar os núcleos, porque eu tinha sido afastado da União, mas ainda poderia visitar os núcleos quando houvesse almoços ou tivesse algo sem ser o ritual. Fui proibido definitivamente de ir lá e me acusaram de estar ‘expondo’ a UDV”, alega.
Lessa revela estar “muito triste” com a situação, porque “ama” a UDV e “foi onde nasceu, cresceu e dedicou muitos anos de sua vida”. Segundo o artista, a “perseguição” também está se estendendo a qualquer membro da União que curta ou comente as publicações do cantor no Instagram. Integrantes relataram para Marcos que estão sendo proibidos de interagirem em postagens do artista.
Para Marcos Lessa, a situação tem sido “muito desgastante”. “Eu sou uma pessoa que não quer briga com ninguém. Nunca fui atrás de confusão. Agora, assim como a religião tem o direito de ter seus dogmas, todo cidadão tem o direito de ter religião. E eu estou lutando para voltar para o lugar que eu amo, porque se eu não gostasse eu teria largado”, indica.
O Vida&Arte enviou um e-mail pelo contato indicado no site oficial da UDV pedindo um posicionamento sobre a denúncia de perseguição. Entretanto, não houve retorno até o fechamento desta matéria.