A dança como um meio de devolver a cidadania para meninas moradoras de comunidades pobres da periferia de Fortaleza. Foi a paixão pelo corpo em movimento que inspirou a professora e coreógrafa Dora Andrade, uma bailarina que rodopiava na ponta dos pés como se numa caixinha de música, a dançar fora da caixa.
Idealizadora e fundadora da Escola de Desenvolvimento e Integração Social para Criança e Adolescente (Edisca), que há mais de 30 anos dá ritmo à vida de jovens da Capital, a filha dos professores Gislene Andrade e Hemetério Araújo aprendeu, desde cedo, que a educação é o maior patrimônio que se pode ter.
Referência com reconhecimento internacional, Dora desenvolveu dentro de casa uma fé inabalável no social e uma vocação para cuidar das pessoas. Ela rodou o mundo a estudar, mas seus passos lhe trouxeram de volta e hoje são seguidos por crianças e adolescentes que só precisavam ter acesso à cultura para fazer seu espetáculo.
"Nesses 32 anos de prática social, centrei o meu olhar na riqueza e potencial que existe nos pobres. As periferias, o que mais possuem é talentos, resiliência, generosidade, fraternidade e força, muita força. Hoje me considero uma pessoa melhor por ter tido a honra de conviver com essas pessoas", destaca.
Por ter sido a Edisca uma experiência pioneira, Dora celebra que viu surgir, aqui e fora do Ceará, outros projetos inspirados nesse fazer: "Assim, a linguagem da dança vem se tornando mais inclusiva e diversa. O que muito nos alegra, pois ampliar o acesso a uma vivência qualificada em arte se constitui, sobretudo, em direito".
"Há anos celebramos o ingresso de nossos educandos em universidades, alguns realizando seus mestrados e doutorados, sendo estes os primeiros de suas famílias a acessarem esse nível de educação. Acredito verdadeiramente que a Edisca contribuiu para essa quebra de paradigma. Nascer na favela de forma alguma deve decretar sentenças", salienta.
Um dos espetáculos de dança mais conhecidos estrelados pela Edisca foi "Jangurussu", de 1995, que narrou a degradação das famílias que sobrevivem dos lixões nas grandes cidades. A apresentação lotou o Theatro José de Alencar em diversas temporadas e ganhou o Prêmio Funarte de melhor coreografia.
Em 2012, a Escola recebeu a Ordem do Mérito Cultural, maior comenda da Cultura do Brasil, concedida pelo Governo Federal. Os programas e ações voltados para as crianças, jovens e familiares (sobretudo as mães) atendidos são destaques nacional e internacionalmente.
Um exemplo é a campanha do Outubro Rosa "Com um passo, você pode ser inspiração", parceria com um laboratório de medicina diagnóstica: a cada mamografia realizada por pacientes, uma é doada em prol de mães de alunos da ONG Edisca. Em 2021, 47 mulheres puderam fazer o exame fundamental para o diagnóstico precoce do câncer de mama a partir da ação.
Dora explica que a rede de apoio da Edisca é composta "primeiramente por representantes das comunidades atendidas, pois são eles que melhor sabem dizer de suas problemáticas e prioridades. Soma-se a esse grupo coordenadores da Edisca, conselheiros, amigos e parceiros".
Um dos momentos mais marcantes para a fundadora da Escola foi a ação junto às comunidades e aos projetos sociais durante a pandemia de Covid-19. "Nunca trabalhamos tanto. Toda a equipe veio para dentro da instituição montar e distribuir cestas de alimentos e kits de higiene. Nos dois anos, a Edisca distribuiu mais de 500 toneladas de alimentos. Me senti viva, útil", recorda.
A bailarina e ginasta rítmica Nicole Lemos, de 10 anos, conheceu a Edisca por meio de uma oficina de dança inclusiva através do Dança-Libras.
Em parceria com a Edisca, a plataforma de pesquisa e criação que tem a Língua Brasileira de Sinais (Libras) como principal fonte de comunicação e produção cênica, realiza um projeto importante para que pessoas surdas possam desenvolver talento e amor pela dança.
Nicole nasceu com deficiência auditiva, mas o fato de não ouvir não a impediu de dançar. Aos 5 anos, a avó de Nicole, professora de balé, percebeu o talento da neta para a dança.
A mãe de Nicole, Orleanna Lemos, ressalta que foi um mês especial: "Teve oficinas para surdos, para cegos, para cadeirantes, foi maravilhoso. São causas muito invisíveis e que precisam dessa oportunidade".
Nem todas as meninas que passam pela Edisca seguem no caminho da dança, mas esse não é o foco. A jornalista Danny Monteiro, por exemplo, aprendeu através da Escola que poderia ser o que escolhesse.
"Aproveitei tudo o que as artes e os estudos me proporcionaram. Fiz amizades para a vida toda. Convivi com mulheres incríveis, líderes e visionárias, que me ensinaram — na prática — o tal do 'empoderamento feminino', quando esse termo ainda nem existia", conta.