Na esquina, no botequim, no terreiro ou no fundo do quintal, o samba nasce sempre debaixo da sombra de uma árvore — talvez por isso seja de raiz. Da Tamarineira de Cacique de Ramos ao verde-e-rosa da Mangueira, a cadência tem como enredo o prateado das folhas e o som dos passarinhos que cantam pela alvorada.
Na Praia de Iracema, foi sob a sombra de dois benjamins que nasceu o reduto do samba raiz em Fortaleza: o estandarte que abriu alas para a mocidade de Iracy de Souza Batista (1935-2011) — mais conhecida como dona Mocinha, a matriarca do samba cearense.
O "tacaticatá" do tamborim conduz a procissão dos foliões no Carnaval pela ponta do pé até seu destino já certo: rua Padre Climério, na altura do número 140, quase no encontro com a João Cordeiro. É o Largo da Mocinha — largo como o sorriso da moça que lhe emprestou o nome.
Há mais de 40 anos, a mesma casa, o mesmo banco e os mesmos pés de benjamim testemunham a festa que se forma ao redor do Bar da Mocinha, um dos mais tradicionais polos carnavalescos da Cidade. Lá, a festa não acaba na quarta-feira de cinzas.
Mas nem todos os que passam por esse lugar sabem quem foi a mulher de alma boêmia responsável por germinar as raízes do samba na terra onde predomina o forró. Casada aos 15, mãe aos 16, viúva aos 23, Iracy viveu uma mocidade tardia — mas se redescobriu Mocinha pelas rodas de bamba. Aos 75 anos, quando morreu, ainda tinha em seu coração sambista a alegria de uma menina.
Filha do rígido José Batista, que trabalhava na alfândega, alcançou uma época em que o prédio onde hoje funciona a Caixa Cultural era o principal ponto de desembarque das mercadorias que chegavam em Fortaleza pela Ponte Metálica. Graças às condições financeiras razoáveis da família, cresceu junto à classe média fortalezense.
Com a chegada da viuvez precoce, Mocinha precisou se reinventar aos 20 e poucos. Por meio dos contatos do pai, virou funcionária da Secretaria de Saúde e Assistência do Ceará no cargo de enfermeira.
Aos fins de semana, quando o expediente acabava, era debaixo dos dois pés de benjamim que Mocinha recebia as amigas do trabalho numa conversa animada que se estendia noite adentro.
Aos poucos, se achegaram muitos: os filhos das amigas, os amigos dos filhos das amigas, os vizinhos. O jeito cativante de Mocinha fazia todos quererem voltar; ela gostava de gente, sabia receber bem. Com tanto movimento, no dia 4 de agosto de 1978, nasceu o Bar da Mocinha.
Àquela altura, o samba ainda não era a marca registrada daquela esquina. Foi quando começou a acolher como mãe os sambistas da Cidade que os batuques tomaram conta da região — especialmente através dos brincantes das escolas de samba da Praia de Iracema que disputavam o Carnaval naquele tempo: Leopoldina, Girassol, Mucuripe.
"Pela cor do som ou pela marca periférica, é fato que o samba nem sempre foi aceito no Ceará. As elites da Cidade não viam com bons olhos o batuque dos 'vagabundos', como eram chamados os quase sempre negros e pobres que faziam a festa", escreve a jornalista Raphaelle Batista no livro "Dona Mocinha", parte da coleção Terra Bárbara, publicado pelas Edições Demócrito Rocha (EDR).
Com o passar das décadas e uma aproximação ainda maior com o samba, Mocinha quis ir para o Rio de Janeiro desbravar a Sapucaí. E foi. "Ela já saiu no primeiro ano na União da Ilha, e agradou demais. Fez logo amizade com a presidente da ala das baianas e com as próprias baianas, né?! Aí, ficou dona da situação", relembra Castelo Camurça, pesquisador da música brasileira.
A partir dali, o Carnaval era outro: ela juntava dinheiro durante o ano e já viajava semanas antes para se juntar às mulheres da escola carioca e emprestar seus dotes costureiros à labuta da confecção de adereços e roupas. Antecipar a festa no Bar da Mocinha foi a solução para garantir a folia também em Fortaleza, o que fez com que o Pré-Carnaval passasse a ter endereço certo na Capital.
Não eram raras as homenagens que recebia: O POVO de 9 de janeiro de 2006 conta que ela já era inspiração para os "Amantes de Iracema".
Em 2008, reportagem de 11 de fevereiro mostra que, além do "Que Merda É Essa?", "O Cheiro" e "Num Ispaia Sinão Ienchi" também eram muito ligados ao bar e àquela que consideravam a sua madrinha.
Na gestão da prefeita Luizianne Lins (PT), a esquina da Padre Climério com João Cordeiro virou oficialmente polo carnavalesco da Prefeitura.
"É um bar histórico, os melhores sambistas já passaram por aqui, vários grupos de sucesso saíram daqui. É a diversão do pessoal, vem gente de todo canto nos fins de semana, principalmente aos domingos, ajuda os trabalhadores ambulantes ao redor, várias famílias se sustentam pelo pagode da Mocinha", comenta "Italo da Mocinha", como se apresenta o neto da dona do bar, atual administrador da folia.
"Hoje o Largo da Mocinha se tornou um polo cultural e carnavalesco, e o principal desafio nesses 12 anos sem minha avó é dar continuidade ao samba", finaliza.