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Valéria Pinheiro: ser ponte entre mulheres
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Valéria Pinheiro: ser ponte entre mulheres

Para cruzar as duas cidades que existem em uma Fortaleza de desigualdades, as pontes, às vezes, são pessoas. Valéria é uma delas e segue na busca por uma travessia segura
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Valéria, ainda bebê, com a mãe, Ozenira Pinheiro
 (Foto: Valéria Pinheiro/Acervo pessoal)
Foto: Valéria Pinheiro/Acervo pessoal Valéria, ainda bebê, com a mãe, Ozenira Pinheiro

Pontes servem para dar continuidade ao caminho — e podem ser o único meio de aproximar distâncias ou de sair de um lado e chegar até outro. Para cruzar as duas cidades que existem em uma Fortaleza atravessada por desigualdades, as pontes podem ser pessoas e Valéria Pinheiro é uma delas. Construir uma travessia segura para outras mulheres foi o que a levou a Ser Ponte e fazer a ligação entre dois mundos separados por "abismos".

Valéria está sempre envolvida por gente. É assim como quem busca olhar no olho. Diretora-presidente da ONG Ser Ponte, a pesquisadora começou com uma ação emergencial que deveria durar quatro meses para ajudar famílias vulneráveis durante a pandemia de Covid-19. O projeto de distribuição de renda completa quatro anos em abril.

Mestra em Planejamento Urbano e Regional pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e graduada em Direito pela Universidade Federal do Ceará (UFC), ela diz que se afastou "da Valéria planejadora urbana, que olha para a Cidade pelos próximos 10 anos em grande escala", e se aproximou "da dona Maria, ali do São Miguel, para que ela tenha o que comer amanhã".

Com a ajuda de doações e voluntariado, a organização chegou a 2024 com 60 famílias chefiadas por mulheres nas periferias da Cidade beneficiadas, um impacto na vida de pelo menos em cerca de 240 pessoas.

Em 2023, foi arrecadado e transferido um montante de R$ 203 mil com os recursos obtidos a partir de doações e ações como brechós e venda de produtos da lojinha da ONG. Em média, ao longo do ano, foram beneficiadas 92 famílias por mês com uma quantia mensal de R$ 180, valor que foi elevado para R$ 200 a partir de outubro.

Apesar de o apurado parecer muito, desde o fim da pandemia a diminuição de caixa tem afetado a sobrevida do projeto de renda básica: entre fevereiro e dezembro, as doações caíram cerca de 34%. Por esse motivo, foi necessário se despedir dos territórios Moura Brasil, Vila Velha e Lagamar, alguns dos que estiveram desde a primeira doação.

Pela conjuntura, a ONG permaneceu em 60 casas dos territórios Serviluz, Barroso, Raízes da Praia, Caça e Pesca, São Miguel e Sabiaguaba, com um impacto direto na vida de pessoas vulneráveis, carentes de um olhar cuidadoso.

Mas assim como a existência da Ser Ponte vai além da pandemia, a existência de Valéria Pinheiro também vai além da Ser Ponte.

Valéria morou no bairro Siqueira até os 18 anos, uma periferia muito próxima aos limites da Cidade: "Circulava muito porque meu pai tinha um pequeno comércio e eu conhecia muitas pessoas, fazia entregas. Ficou na minha lembrança as diferenças de precariedade mesmo dentro de um bairro precário".

"Eu sou adotada, e isso é muito importante para a minha história. Acredito que isso tem muito a ver com esse caminho que eu escolhi percorrer. Não carrego muitas lembranças da infância porque, por ser adotada e filha única, eu sempre fiquei muito sozinha. Ficava muito entretida com as minhas próprias coisas, com meu próprio mundo", recorda.

Passou no vestibular para Direito com 17 anos, curso que escolheu porque "queria fazer alguma coisa por mais Justiça no mundo". No dia a dia, ficou decepcionada ao perceber que o Direito é um instrumento "que tanto pode servir como uma faca como pode servir para cortar o pão".

"Conheci o Centro de Assessoria Jurídica Universitária Popular, o Caju, que é um projeto de extensão que atua em pautas de direito à cidade, e passei a exercitar o conhecimento jurídico na luta. Isso que me segurou na faculdade e é muito base do que eu sou até hoje, foi o começo da minha caminhada de militância em direitos humanos", conta.

"Saindo da faculdade, fui convidada a trabalhar na ONG Ceará Periferia. Já de cara, com 23 anos, coordenei uma campanha por um Plano Diretor participativo, para lutar por um planejamento urbano mais democrático. Então muito nova fui para o terceiro setor e fiquei nessa entidade até 2011, quase 10 anos. Foi uma grande escola", continua.

"De lá, fui fazer o mestrado em Planejamento Urbano na UFRJ e voltei para trabalhar na Universidade, onde eu permaneço até hoje. Trabalhei durante muitos anos no Laboratório de Estudos da Habitação (Lehab)", narra.

Em 2020, ela percebeu que as coisas iriam piorar: "Muitíssimo. Eu pensei logo na fome, na falta de trabalho que ia acontecer de maneira muito rápida. Então decidi muito rapidamente chamar pessoas para me ajudarem a sustentar alguma atuação mais emergencial para fazer chegar o básico: comida, álcool em gel, máscara".

Na última vez que fizeram levantamento, mais de 72% das pessoas que ajudavam a Ser Ponte eram mulheres. "O que é contraditório, porque a gente sabe que a gente recebe menores salários, temos trabalhos mais precários, risco de sermos demitidas, e, mesmo assim, a gente é mais solidária", opina.

"E é confortável estar rodeada de mulheres, mas ao mesmo tempo tem aquele incômodo, aquela raiva mesmo de 'sim, cadê os homens nessa história? Qual a parte que cabe a eles nesse latifúndio de injustiças?'. São as mulheres, principalmente as mulheres negras, que carregam o maior peso das precariedades", exclama.

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