A notícia da demolição do Edifício São Pedro reverberou fortemente por Fortaleza na última semana. Desde o anúncio do prefeito José Sarto (PDT) na segunda-feira, 4, a população parece se dividir entre aqueles que concordam com a iniciativa, que rechaçam e aqueles que são indiferentes a qualquer posicionamento.
Passada uma semana da informação e atravessados os debates sobre a demolição em si, outros olhares podem ser direcionados ao contexto - e ampliá-lo. Antigo Iracema Plaza Hotel, o São Pedro é uma das referências do bairro Praia de Iracema, mas não a única. Diante disso, como se apresenta a conservação da memória sobre a região?
Afinal, a originalmente denominada Praia dos Peixes (por ter sido vila de pescadores) passou a "abrigar" ao longo do tempo diferentes construções que, de certa forma, se tornaram símbolos da região. A Ponte dos Ingleses, o Estoril, o Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura (CDMAC) e o próprio São Pedro são alguns dos exemplos.
Entretanto, a Praia de Iracema não é "apenas" isso. Como menciona o professor e historiador Sebastião Rogério, seus principais símbolos passam também pelos nomes indígenas de ruas (como a dos Tabajaras), a Igreja de São Pedro, a canção "Adeus, Praia de Iracema", de Luís Assunção, o Mara Hope e a estátua Iracema Guardiã.
Ele elenca como características mais marcantes de sua história o fato de ter sido "o primeiro bairro elegante litorâneo de Fortaleza", bairro da primeira casa de veraneio da Cidade (o Estoril), o "primeiro e principal bairro boêmio de Fortaleza a partir dos anos 1940" e também por ter tido "o primeiro hotel com mais de oito andares de frente para o mar".
E quanto à preservação de sua história? Para Sebastião, a "memória histórica do bairro sofre um duro golpe" com a demolição do prédio. É fato que a Ponte dos Ingleses está sendo reformada e tem previsão de entrega para este ano, mas vale lembrar que ficou interditada por quase seis anos. Em 2022, a estátua da Iracema Guardiã caiu. Na época, relatos lamentavam o mau estado de conservação da estrutura. "Espera-se que outros equipamentos caros à história do bairro sejam preservados e conservados", estima o historiador.
No contexto do debate proporcionado a partir da demolição do Edifício São Pedro, o antropólogo, doutor em sociologia, jornalista Paulo Linhares questiona "a demanda de um passado memorial" de Fortaleza. "Por que temos essa demanda de que estamos perdendo algo muito importante? Por que isso é tão forte em alguns setores médios e da elite de Fortaleza?", indaga.
Em sua análise, aponta que Fortaleza é um município relativamente jovem e que "não tem um passado colonial", ao contrário de capitais como Salvador, Recife e São Luís. A capital cearense se tornaria no século XX o formato de cidade que conhecemos hoje. "A memória que ela preserva e sentimos perder é uma memória que não tem padrão de edificação significativo do ponto de vista da tradição de edificações coloniais", indica.
Linhares elenca a filósofa e historiadora francesa Françoise Choay, que destrincha historicamente a memória - antes, uma memória construída para ser lembrada; depois, um tipo de patrimônio histórico que ganhava significação com um tempo histórico; por fim, o patrimônio urbano que a cidade institui como sendo uma memorialística da vida social. Dessa forma, o sociólogo avalia que em Fortaleza há "muito mais patrimônio de pertencimento"
"Vamos falar sobre o próprio Edifício São Pedro. Conheço ele, morei lá por dois anos, então posso falar. O próprio Iphan se negou a tombá-lo. Arquitetonicamente, ele não tem importância alguma. Ele é uma lembrança da elite. O que ele representa é uma lembrança litorânea dessa elite e classe média que compraram a ideia de que aquilo é uma coisa muito importante. Não estou dizendo que as pessoas estão erradas ao se apegarem a essas simbologias, mas não são tão importantes como, por exemplo, nosso passado indígena ou de outras memórias que são definidoras do nosso povo", argumenta.
Assim como é relativamente nova a história de Fortaleza, também é, na análise de Paulo Linhares, a da Praia de Iracema, que ainda "constrói suas simbologias". Ele afirma preferir outros tipos de reverências à região, como ruas com nomes indígenas, a "escala de vida" da Praia de Iracema, a memória histórica das fases do Estoril e "das referências que o Fausto Nilo faz no Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura ao Ceará. "A Praia de Iracema está se construindo", destaca.
Para além disso, é ponto de ênfase a "sociabilidade" vista na PI. O arquiteto e urbanista e compositor cearense Fausto Nilo, um dos autores do projeto do CDMAC e da reforma da Ponte dos Ingleses, destaca a Praia de Iracema como um dos lugares com "maior potencialidade da vida compartilhada".
Entretanto, existe também, assim como em outros locais de Fortaleza, "grande quantidade de ativos importantes de arquitetura sendo ocupados por repartições públicas". "A Praia de Iracema é cheia de repartições públicas. Isso significa que a partir das 10 horas chegam alguns carros, estacionam, e às 16 horas vão embora. À noite, é uma depressão urbana total", indica.
No aspecto da sociabilidade, um dos maiores exemplos é a Praia dos Crush, trecho da Praia de Iracema entre a Ponte dos Ingleses e o Espigão da João Cordeiro. Desde 2016 o local se constituiu como um ponto importante de lazer para a juventude e, apesar de contar com um público diverso, tem como maioria de frequentadores jovens da periferia.
Tamanha é a importância da Praia dos Crush na sociabilidade que foi tema da dissertação de mestrado de Clara Soares, hoje doutoranda em Sociologia da Universidade Federal do Ceará (UFC). No trabalho, ela analisa como o trecho "foi inventado a partir de uma simbiose entre as representações que passaram a circular acerca dela e os usos que ela passou a ter para a juventude periférica fortalezense".
É possível traçar um paralelo, então, com o argumento de Paulo Linhares de que "as identidades são construções históricas". A Praia de Iracema, no "embate" entre representações da elite e ocupações por moradores da periferia, pode se voltar também às origens das lutas dos trabalhadores do mar que são a "população originária" dela.
Dessa forma, Paulo indica a necessidade de olhar para outras histórias contadas a partir da Praia de Iracema. Há vida no Poço da Draga. Há lembranças sobre jangadeiros como Manuel Jacaré, que viajou ao Rio de Janeiro em 1941 para reivindicar a Getúlio Vargas direitos trabalhistas para os pescadores.. "Poderiam ser feitas pequenas intervenções. Essa é a grande memória que temos que reconstruir: a memória das lutas pela liberdade", pontua.
"Acho que temos que pensar em monumentos de libertação e de liberdade. O que tem do Manoel Jacaré na Praia de Iracema? O que foi investido no Poço da Draga? O que tem de José Luis Napoleão e Tia Simoa ali? Se essa história não for contada, quem é que vai saber? Por isso, quando dizem que 'o povo não tem memória', eu acho que não tem porque não é importante para ele. O povo seleciona o que é importante como memória. O que o Iracema Plaza Hotel tem de importante para quem mora no Bom Jardim? Nada. É uma memória de uma elite de privilégios", argumenta.
Mara Hope
Uma das "paisagens" mais emblemáticas da Praia de Iracema está cada vez mais próxima de chegar ao fim. Encalhado há 39 anos e por bastante tempo ponto turístico de Fortaleza, o navio Mara Hope está em processo avançado de deterioração. Na última terça-feira, 5, O POVO registrou mais um afundamento da estrutura após parte do casco ceder.
A embarcação atraiu por décadas fortalezenses e turistas, contemplando desde curiosos pela história do Mara Hope a aventureiros que subiam no navio para dar saltos em direção ao mar. O petroleiro, que já foi tema de filmes como "O Sentinela da Frágil Fortaleza", também foi cenário do videoclipe da música "Tarde Livre", da banda de rock cearense Selvagens à Procura de Lei.
"Foi daquelas ideias de 20 e poucos anos. Uma ideia desafiadora", lembra o vocalista Gabriel Aragão. Em algumas cenas do clipe, lançado em 2015, os integrantes aparecem nadando em direção ao Mara Hope e chegam a subir na embarcação. Na cena final, eles pulam do navio. O processo envolveu viagens "de reconhecimento" para ter segurança.
"É uma homenagem à Cidade e, ao mesmo tempo, você se mistura com aquele símbolo. Várias pessoas que não moram em Fortaleza, quando vêm à Capital e são fãs da banda, veem o Mara Hope e já relacionam ao videoclipe. Fica todo mundo querendo saber onde foi a locação", explica.
"Foi uma época muito massa, de olhar para trás e ver Fortaleza de outro jeito. A gente cresceu naquela região do Dragão do Mar. Tudo isso faz parte desse pedacinho que envolve o Dragão, a Praia de Iracema, a galera do Poço da Draga… Isso passou muitas inspirações para letras que escrevi no Selvagens", identifica.
La Femme Bateau
Anteriormente instalada na Ponte dos Ingleses, a obra "La Femme Bateau", do artista cearense Sérvulo Esmeraldo, completou seis anos fora de seu lugar original depois de ter sido atingida por uma forte ressaca marítima. O resgate aconteceu em 5 de março de 2018, mas desde então a obra não voltou à paisagem.
Dodora Guimarães, presidente do Instituto Sérvulo Esmeraldo e viúva do artista, afirma que tem sido informada pela Secretaria da Cultura de Fortaleza (Secultfor) "dos trâmites dos restauro" e acredita que é possível que a obra esteja de volta ainda neste semestre. "Estamos confiantes", alega.