Logo O POVO+
Ana Miranda lança 'Bionírica', coletânea de desenhos que recontam sua vida
Vida & Arte

Ana Miranda lança 'Bionírica', coletânea de desenhos que recontam sua vida

Escritora Ana Miranda, autora de clássicos da literatura brasileira como "Boca do Inferno" "Dias e Dias" lança "Bionírica, uma coletânea de desenhos que narram sua trajetória na vida e na arte. A curadoria é de Rosely Nakagawa
Edição Impressa
Tipo Notícia Por
ANA Miranda  (Foto: Ethi Arcanjo/ em 16-3-2014)
Foto: Ethi Arcanjo/ em 16-3-2014 ANA Miranda

No início eram os desenhos de Ana Maria. Bem antes de aprender a ler ou escrever, os primeiros traços já indicavam o que se tornariam uma marca de Ana Miranda: um rosto de menina com flores nascendo no topo cabeça. Tinha por volta dos seis anos.

Nasciam ali os desenhos ou o "registro não premeditado de sentimentos, desejos e dores", como afirma a escritora, autora de clássicos do romance histórico brasileiro como "Boca do Inferno", "Desmundo", "Dias e Dias" entre outros.

Ao longo de décadas, Ana desenhou e guardou em 28 pastas uma vida em segredo narrada em cerca de 1.500 desenhos. Confessa que sequer gostava deles, não os assinava, eram apenas testemunhos silenciosos que "iam desaparecer", supunha. "Serviriam para nada, apenas restos de uma vida", pensava.

A ideia de transformar os desenhos em livro veio há anos da amiga e editora Anna Dantes, mas foi o companheiro Theo Van de Sande quem fez a pergunta: "Qu´ya-t-il dans ces dossiers noirs?" "O que há nestas pastas pretas?". "Oh, ce sont quelques dessins", "Alguns desenhos", respondeu a escritora casualmente.

O impacto da descoberta dos desenhos, Theo conta num texto assinado por ele no livro que Ana Miranda lança neste março de 2024, no dia 14, às 19h, na Galeria Multiarte, que também recebe uma exposição com os desenhos da escritora. Ele narra como "entrou no mundo de sonho" dos seres multiformes de Ana e se deixou levar "sem limitação de moldura".

Os segredos de Ana estão, enfim, descobertos. Em entrevista ao OP , a escritora afirma que está vivendo uma sensação ambígua: Por um lado tem o sentimento de "estar prestes a ser inundada", por outro, sente-se feliz e aliviada pelo livro que mostra pela primeira vez os desenhos escondidos por décadas.

"Eu achava que seria melhor um livro póstumo, que poderia incluir todas as fases dos meus desenhos e pinturas, mas, ao mesmo tempo sentia a necessidade de me libertar dele, realizando-o", pondera Ana Miranda. E assume: "Sou a pessoa do livro". Confira a entrevista com a escritora:

 

O POVO - Vamos começar do começo. Você guardou todos esses desenhos por tanto tempo, como se fosse algo muito particular que precisava quase se manter em segredo. Qual é seu sentimento agora, prestes a torná-los conhecidos em livro e por meio de uma exposição?
Ana Miranda - Os indígenas dizem que quando fazemos uma foto deles estamos roubando a sua alma, e é um pouco essa sensação, também a de estar prestes a ser inundada, um dique vai se romper. Mas é um sentimento ambíguo, pois sinto uma felicidade, um alívio, quase como o de um dever cumprido, um sentimento parecido com o da mãe que vê seu filho crescer e sair de casa, voar para o mundo. Eu precisava realizar esse livro, a ideia, que foi da minha amiga e editora Anna Dantes, deve ter uns trinta anos. Eu achava que seria melhor um livro póstumo, que poderia incluir todas as fases de meus desenhos e pinturas, mas, ao mesmo tempo sentia a necessidade de me libertar dele, realizando-o. Sou pessoa do livro.
Quando duas crianças Yanomami foram mortas brutalmente, meu sofrimento foi imenso, mas quando as desenhei, elas estavam leves, tinham asas, voavam como se fossem dois anjos.

OP - No texto do livro, você expõe aspectos muito pessoais da sua autopercepção que eram transpostos para esses desenhos: Medo, solidão, uma certa inconformidade com o mundo em redor entre outros que você elenca ao longo da publicação. Ao pintá-los, de alguma forma, você ia ressignificando esses sentimentos ao longo da vida?
Ana Miranda - Sim, às vezes descobrindo sentimentos, às vezes ressignificando. Quando o Museu Histórico foi incendiado, fiz um desenho que me mostrou a profundeza de meu sofrimento, eu não sabia que tinha ficado tão ferida, o desenho é trágico, uma mulher toda rachada, em lágrimas, coroada por um edifício em chamas. Quando duas crianças Yanomami foram mortas brutalmente, meu sofrimento foi imenso, mas quando as desenhei, elas estavam leves, tinham asas, voavam como se fossem dois anjos, embora eu tivesse desenhado no céu uma lua vermelha, como uma lua de sangue. E infinitas vezes eu quero desenhar uma coisa e acabo desenhando outra, que se forma com força a partir de algum sentimento. Como quando minha mãe fez cem anos e desenhei uma mulher de cem anos que parecia eu mesma, ou uma pintura em que as minhas unhas ferem meu pescoço...

OP - Observando seus desenhos e pensando nas personagens femininas (Oribela, Marta, Feliciana, Yarina, Semírames e Iriana) dos livros publicados, você identificaria nos seus desenhos cada uma dessas mulheres?
Ana Miranda - Lembro que desenhei mais de uma vez a bailarina do meu romance "Amrik", a Amina Salum. Também a figura feminina na capa de Semíramis me parece uma entidade sertaneja feita de Iriana. Mas os desenhos se relacionam mais com a minha literatura em si, com o modo como escrevo, como se pintasse e bordasse, os sentimentos, as emoções de quando escrevo, o modo como exerço a imaginação e a fabulação, e também com a alma do livro, que é na verdade a minha alma. Tudo o que faço, tudo o que fazemos vem de uma entidade única que existe dentro de nós, nosso "demiurgo" e tudo o que fazemos é feito pela mesma entidade íntima, mas também universal, ancestral, de toda a humanidade. O Borges dizia que todos os livros do mundo foram escritos por um único ser onisciente. Acho que estava falando de Deus, o deus que existe dentro de cada um de nós.
Até meus cavalos, meus gatos, minhas figuras masculinas ficam parecidos comigo, mas acho que só eu me reconheço. Será? Não consigo me esconder nem nos desenhos, nem na escrita.

OP - Elas são todas Ana Miranda assim como a multiplicidade de formas femininas que você desenha, mas que parecem ser uma só?
Ana Miranda - Sim, todas são Ana, não consigo escapar de mim mesma, apesar de me esforçar, e de viver cansada de ser sempre eu mesma (risos). Quando desenho a minha irmã cantando para os Paiter Suruí, ou quando desenho a minha filha dançando flamenco, meu filho lendo, ou o Theo dançando com as orquídeas, tudo não passa de uma visão interior, tudo visto por meus olhos, minha história, meus sentimentos... Até meus cavalos, meus gatos, minhas figuras masculinas ficam parecidos comigo, mas acho que só eu me reconheço. Será? Não consigo me esconder nem nos desenhos, nem na escrita.

OP - Aliás, quando você fala em Bionírica da duas mãos: a da escrita e a do desenho, eu lembrei logo de Semírames e Iriana. É possível falar nessas semelhanças?
Ana Miranda - Nunca pensei nisso, mas é um achado, pode ser, porque para mim a Semíramis representa o sonho e a Iriana, a realidade, uma a ficção e a outra a não ficção. Para mim as duas irmãs são partes de um mesmo ser, porque todos nós temos dentro de nós o sonho e a realidade, algumas pessoas sonham mais, outras são mais realistas, mas ambos existem em todos nós. Minha amiga psiquiatra infantil, Maria Helena, diz que nascemos deuses, com todos os talentos, capacidades e dons, e vamos sendo cerceados, encaminhados pelas relações humanas em família e na sociedade. Acho isso muito bonito, nascermos completos.

OP - Outro ponto sobre o qual gostaria de ouvi-la era sobre este diálogo de linguagens: Seus livros são construídos em linguagens particulares e você as transforma para fazer nascer os romances, foi assim em Desmundo, Amrik, Yuxin. Os desenhos, ao longo do tempo, também criam uma narrativa própria com traços peculiares que formam uma espécie de gramática. Foi uma surpresa para você ver agora que eles sempre caminharam juntos? A linguagem e os desenhos?
Ana Miranda - Regina, linda essa imagem da gramática dos desenhos. Essa surpresa aconteceu quando pela primeira vez um desenho meu saiu na capa de um romance, que foi o "Desmundo", uma espécie de gato com asas engolindo-se pelo próprio rabo, em um moto contínuo. Eu já tinha publicado alguns romances, e eles tinham capas de iconografia colonial, coisas assim, e um dia o Luiz Schwarcz, meu editor, da Companhia das Letras, entrou em meu escritório no Rio e viu um desenho pregado na parede, perguntou de quem era o desenho, e quando soube que era meu, sugeriu que todas as capas de meus romances fossem com desenhos meus. Quando vi a primeira edição do "Desmundo", tive a percepção nítida de que aquela imagem era a essência do livro, ali estavam todos os pensamentos, sentimentos, cenários, personagens, tudo. Assim, também aconteceu depois, com a sereia de "Amrik", ou com a indígena amazônica na capa de "Yuxin". Eu via cada vez mais que o desenho e a escrita eram a mesma coisa. Não consigo viver longe da natureza. As cidades grandes me exaurem. Amo a natureza, preciso dela, meu desenho mais antigo conhecido é uma menina com flores brotando na cabeça.

OP - Você trouxe para a literatura brasileira a natureza de uma forma muito viva, incluindo povos indígenas, muito antes de o tema estar em evidência no País. Seus desenhos trazem também essa marca. Como se dá sua relação com a natureza?
Ana Miranda - Não consigo viver longe da natureza. As cidades grandes me exaurem. Amo a natureza, preciso dela, meu desenho mais antigo conhecido é uma menina com flores brotando na cabeça. Bem, eu nasci de frente para o mar, na praia de Iracema, fui criança pequena pisando a areia branca, ouvindo o vento a bater nas folhas de coqueiro... Depois fui para o Cerrado, em Brasília, um mundo impressionante com uma natureza estranha que parecia ser de outro planeta, eu desenhava, criança, as "flores de outro planeta", que eram as flores do Cerrado, esse bioma magnífico, precioso, um milagre, como todos os outros biomas. E tenho uma irmã que é praticamente uma indígena, ela entra nas florestas, passa temporadas com indígenas e canta suas músicas... Ela me traz a profundidade das florestas, com uma realidade que ela descreve como ao mesmo tempo céu e inferno. E com o passar do tempo, fui, fomos tomando conhecimento da devastação que estamos causando, nós, os seres humanos, uns mais e outros menos, mas todos. Isso me deixa arrasada, vivo sonhando salvar o nosso ameaçado planeta Terra. Eu, tão pequenina e efêmera.

OP - Sobre os sonhos, lembro-me de quase toda entrevista você falar deles quase como um processo criativo da sua literatura e agora sabemos que dos desenhos também. "Bionírica" é a materialidade dos seus sonhos?
Ana Miranda - Exatamente isto, os sonhos vêm à tona e se tornam visíveis. Tornam-se outras linguagens, com linhas, cores, pinceladas... Muitos de meus livros nasceram de sonhos, porque sempre sonhei muito e anotei meus sonhos, isso criou uma janela aberta entre os dois mundos. Como são mais de sessenta anos desenhando, quando fui ver, os desenhos formavam uma autobiografia sonhada. Por isso o livro se chama Bionírica, palavra que eu inventei, para uma biografia onírica, uma biografia sonhada. Uma amiga disse que tem a sensação de que meus desenhos formam um mundo ao mesmo tempo desconhecido e familiar, e de que ela está lendo, mas com o inconsciente. O artista Wilson Neto sentiu neles a presença das frases desconhecidas. Mas como o livro é onírico, e transcende as minhas fases de vida, cai num mundo simbólico, ele pode ser visto como um sonho da feminilidade, ou de todas as mulheres.

OP - Theo parece ter tido um papel fundamental na construção do livro. "Ana Maria, o que tem nessas pastas?", foi a frase que trouxe à luz o Bionírica?
Ana Miranda - Foi exatamente nesse momento, quando o Theo abriu a pasta dos Seres Oníricos. Ele descobriu um mundo de desenhos desconhecidos, secretos, e como todo bom holandês, os holandeses endeusam a Arte, tratou logo de me fazer escanear os desenhos para preservá-los, e passou a me presentear lápis de cor, papéis de alta qualidade, pincéis, pasteis oleosos, papéis imensos para eu fazer desenhos imensos... Estímulos, olhares, compreensão, honestidade. E um dia, eu soube bem mais tarde, ele conversou com nossa amiga Manoela, que ama a Arte, que é de uma família apaixonada por Arte, que ama os meus desenhos, e graças a esse diálogo que acabou unindo o Instituto Queiroz Bacelar, a editora Armazém da Cultura e a galeria Multiarte, o livro se tornou papel, tinta e vida. O livro é filho de amores.

Lançamento de "Bionírica"

  • Quando: quinta-feira, 14, às 19 horas
  • Onde: Galeria Multiarte (rua Barbosa de Freitas, 1727 - Aldeota)
  • Preço do Livro: R$150 no lançamento 
O que você achou desse conteúdo?