"Bionírica" é um livro de sensações e que desperta os mais diversos sentimentos. Para começar, uma outra Ana Miranda surge dos desenhos que ela guardou em segredo por tantos anos. Cuidadosamente rabiscou, desenhou, pintou em vários suportes, usando diversas texturas desde criança de uns seis anos. Aos poucos ia compondo "sem saber, uma biografia irracional". No livro, os sonhos de Ana Miranda confundem-se com o real dos sentimentos confessados.
Os desenhos têm a marca da liberdade, principalmente pelo fato de serem feitos para si mesma ou para dar conta da própria intimidade. Não havia ali uma pintora declarada construindo uma carreira de artista visual, e, sim, uma escritora que enquanto escrevia e lançava livros, desenhava em secreto uma vida que as palavras não conseguiam traduzir. Eram "desenhos livres de estilos, influências, intenções, fases, farsas", afirma.
Do livro composto a partir de uma coleção de cerca de 1.500 desenhos guardados ao longo de décadas, surgem meninas, moças e mulheres transfiguradas. O rabisco de rosto infantil com florzinhas no topo da cabeça foi cedendo espaço para uma explosão do feminino.
Se no começo, a jovem Ana ia buscar nas lembranças da infância na família, nas viagens e nas leituras o universo dos desenhos, à medida em que tornava adulta, começa uma viagem interna no qual percorria o próprio sentir: "A introspecção alimentava uma fluência interior", afirma Ana em "Bionírica". "O silêncio criava conexões com o desconhecido", relembra.
Da viagem a esse mundo novo saem mulheres de aspecto sereno e múltiplas, diversas em contornos, formatos e nuances. São seres ambíguos, seus corpos se misturam a outros seres vivos que os compõem com caldas, garras, galhos, flores e frutos, asas, patas chifres. É possível dizer que o feminino de Ana Miranda está envolto em mistério e nasce livre. "Eu era soberana enquanto desenhava. Podia conceber um mundo unicamente meu".
Nesse mundo onírico, Ana se funde aos personagens pintados. "Nos desenhos eu não era simplesmente humana, mas seres híbridos". A fusão de onde se construíam o que ela chama de "delírios", a arrastava para o mais íntimo de si, a lugares de intenso sofrimento. "Meus conflitos se revelavam nos desenhos: isolamento, irracionalidade, busca da independência, (...) raiva contra a opressão. Desamor por mim mesma, o excesso de severidade".
As mulheres com rostos sobrepostos, olhos em séries, braços longilíneos que surgem de vários lugares dos corpos femininos desfigurados vão ao encontro dos tormentos que batalhavam na arena íntima da sua autoconstrução: "O mundo da expressão pessoal me alarmava, abria enigmas da existência, sentimentos escondidos, medo, ameaças católicas do inferno, o desejo pelo homem, a essência feminina. O que era ser mulher?", questionava-se.
"Bionírica" é o mote da biografia sonhada de Ana Miranda, mas não apenas. Ela avança sobre o feminino e amplia as possibilidades de cada ser que dialoga com o feminino. Da cabeça de uma mulher sairá um mundo. Ou de suas mãos, como lembra Ana da primeira, escrita aos quatro anos de idade: "Eu tenho duas mãos".
Segundo a autora a frase era profética. "Sempre tive a mão do desenho e a mão da palavra. (...) A mão do desenho, livre, trabalhava ao acaso, era a mão que pensava, enquanto a mente ia em devaneios. A mão da palavra é associada ao racional, é a mão dirigida pela mente que pensa e decide".
Durante a entrevista concedida ao O POVO uma outra frase parece confirmar uma profecia. "Sou a pessoa do livro", que tanto pode dizer da afinidade da escritora com o suporte, mas também confirma que "Bionírica" traz em si uma pessoa com corpo e alma. O corpo dos desenhos e a alma na própria Ana Miranda, escritora e pintora que se deixa ver e conhecer os segredos.
Mais livros da escritora
O poeta maranhense Antônio Gonçalves Dias é o personagem da trama que reúne História e ficção e conta sobre o amor de Feliciana pelo autor de "Canção do exílio". O romance explora a cultura brasileira do século XIX, incluindo aspectos dos costumes indígenas que compõem o mosaico cultural brasileiro.
Neste romance histórico, Ana Miranda se volta para o escritor José de Alencar, nascido no Ceará no século XIX, período de grande agitação política em torno da família do escritor. Pela voz das duas irmãs, Semírames e Ariana, o leitor reencontra os personagens históricos da literatura e política brasileira.
Trabalho de investigação quase etnográfica, a partir de documentos históricos que refazem os passos da escrava que ficou rica nas Minas Gerais. A escritora revela com riqueza de detalhes costumes da época, além de abordar a dinâmica econômica e social brasileira em torno da extração do ouro.
Romance de estreia da Ana Miranda, tornou-se um clássico do romance histórico no Brasil. Nele, a escritora reconstrói a trajetória do poeta Gregório de Matos Guerra no período colonial brasileiro.