Presidente Castello Branco — este título soa familiar, certo? Em Fortaleza, por exemplo, é possível enxergá-lo em vias públicas, escolas e edifícios. Brasil afora, ele pode até ser visto sendo homenageado ao nomear um município, como é o caso de uma cidade em Santa Catarina.
Mas Humberto de Alencar Castello Branco não foi apenas ex-presidente do País, ele também participou e articulou o golpe cívico-militar de 1964 — a primeira faísca dos 21 anos de ditadura, conhecida também como "Anos de Chumbo". Foi assim que, no dia 15 de abril, o marechal cearense foi eleito de forma indireta como o primeiro presidente do regime.
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Mesmo com sua participação nos anos obscuros para os brasileiros, Castello Branco tem uma imagem que pode até ser considerada "boa". Para muitos, inclusive, ele é classificado como o "menos pior" ou o "mais brando" daquele período. Mas tem como um ditador ser "leve" se pratica um poder autoritário?
O filme "Castello, O Ditador", uma produção do O POVO+ lançada nesta segunda-feira, 18 de março, pretende mostrar que apesar da mitificação de sua imagem, o marechal cearense teve um papel importante para a manutenção da ditadura militar no País, como também para o que ela se tornaria.
A pesquisadora Luana Sampaio, uma das diretoras do longa, se debruçou nos feitos de Castello Branco naquela época, pesquisando em documentos históricos e relatos. Ela explica que a imagem de ditador não costuma ser atrelada ao ex-chefe de Estado, "porque os outros foram piores".
A carreira militar construída por ele é um dos pontos que ajuda em sua reputação. Castello Branco era conhecido por aqueles que eram próximos como um homem inteligente e moderado, defensor de que a política não se misturava com as forças armadas. "Agora, quando a política está indo pelo rumo que ele não concorda, ele muda o ponto de vista dele, para se meter, interferir naquilo, com o discurso que o Brasil ia cair na garra do comunismo", aponta Luana.
É com essa articulação que Castello Branco passou a segurança necessária para que a área civil acreditasse que eles iam fazer "uma limpa" — se referindo ao comunismo — e, após o tempo estipulado de mandato, ele e as Forças Armadas brasileiras devolveriam o poder para a democracia.
Os fatos históricos, no entanto, mostram o contrário: a ditadura se estendeu por anos, com sua repressão aos opositores se tornando cada vez pior. E os cinco Atos Institucionais foram cruciais para que isso se tornasse possível.
O cearense foi responsável pelo 2º, 3º e 4º Atos Institucionais, que permitiam interferências nos governos estaduais e municipais, dissolução dos partidos políticos, perseguições políticas e a criação de uma nova Constituição — a de 1967. Castello Branco não era moderado como por muitas vezes é descrito.
"Ele alicerça a ditadura e as bases dela para ela se tornar até 1985 cada vez mais terrível", afirma o jornalista Demitri Túlio, também diretor do documentário, pontuando que o objetivo do longa é desconstruir essa ideia de "moderado". Para ele, a forma como a história oficial do golpe militar foi contada contribuiu para essa contradição em torno da imagem do marechal. "Ele não era um ditador bonzinho", pontua.
"Ele conspirou para derrubar João Goulart. Conspirou com intelectuais e civis", lista a participação do ex-chefe de Estado, destacando que é importante lembrar do apoio civil do golpe. Ele lembra que as Forças Armadas tinham os meios, mas foi esse apoio que possibilitou seguir, pois estes buscavam uma liderança que desse voz aos desejos autoritários e ações que iam contra minorias.
"A história oficial fala desse Castello Branco atenuado, mas ele não é", sustenta. Em seguida, completa: " Não existe ditador bom, mais ou menos, ou ruim. Ditador é ditador, ele é autoritário e contra a democracia".
Convocar a memória do presente para entender o passado
A memória de Castello Branco sempre se beneficiou de uma lembrança seletiva e, por que não dizer, celebrativa. Seu nome é homenageado por avenidas, edifícios, escolas e monumentos. Alguns pertences estão preservados em Quixadá, no Ceará. No Rio de Janeiro, uma estátua na praia do Leme lembra o Marechal. Um Batalhão em Fortaleza recebe seu nome e a 10ª Região Militar guarda um pequeno acervo que, em suas palavras, destaca o “legado de integridade moral, amor à profissão e dedicação ao serviço da Pátria” de Castello.
Mas quando surgiu a ideia de fazer um filme sobre o primeiro ditador do regime militar, sabíamos que não iríamos fazer uma biografia. A ideia inicial, de abordar as contradições e mistérios envolvidos no acidente aéreo que matou Castello e mais quatro pessoas, se dissolveu pela inconsistência narrativa do tema e deu lugar a questionamentos que iam desde a participação dele no golpe, até seguir os rastros da memória de um período autoritário que ainda não se encerrou.
A pesquisa que foi realizada em acervos, livros, materiais acadêmicos, entrevistas com especialistas e outros, desnudou a face golpista de Castello e sua singular participação na conspiração orquestrada por ele juntamente com as Forças Armadas, empresários, imprensa, latifundiários, setores religiosos e conservadores da sociedade brasileira. O Marechal que é diversas vezes lembrado como o “menos pior” ou um homem intelectual e admirável - como inclusive nos foi dito em algumas entrevistas - foi o articulador central do golpe de Estado que fez o Brasil mergulhar em mais de duas décadas de profunda opressão, violência, perseguição, desigualdade social, instabilidade econômica e demais chagas deixadas pelos militares.
Durante a produção, sempre se falou no Ato Institucional Nº 5, aquele que extinguiu os direitos civis e abriu caminho para a tortura em larga escala. No entanto, pouco se lembra que os quatro Atos Institucionais anteriores a esse foram assinados por Castello, que com eles institucionalizou a cassação de mandatos, excluiu direitos políticos, perseguiu opositores, proibiu eleições diretas para presidentes e governadores, extinguiu partidos políticos, dentre outras medidas autoritárias.
O filme, então, cresceu em direção a essa herança escanteada do “primeiro presidente cearense” e foi à fundo no debate sobre as consequências da ditadura que ele ajudou a construir. Diante da incipiência do diálogo em escala institucional sobre a memória da ditadura e tendo em vista a data na qual o golpe irá completar 60 anos, “Castello, o ditador”, convoca a memória do presente para que o passado seja ouvido. Para os que foram sequestrados, agredidos, perseguidos, mortos, desaparecidos, assim como para os seus filhos, irmãos, netos e bisnetos, o passado não passou e a reparação não chegou. O silêncio do Brasil falhou com eles. Com quantas gerações ele irá falhar?
Ponto de vista escrito por Luana Sampaio, diretora do documentário "Castello, O Ditador"
Filme "Castello, O Ditador"
Onde assistir: O POVO+