O título é um verso da música “Saudosa Maloca”, de um dos maiores compositores de samba do Brasil, Adoniran Barbosa. A canção ganha contornos palpáveis no filme que leva o mesmo nome e é dirigido por Pedro Serrano. Com o cearense Gero Camilo, como Mato Grosso, Paulo Miklos encarna o sambista e Gustavo Machado completa o trio como Joca.
As aventuras da Maloca, cantadas por João Rubinato (nome verdadeiro de Adoniran), são narradas pelo próprio compositor ao garçom Cícero (Sidney Santiago Kuanza). Entre uma bebida e outra, o compositor relembra uma São Paulo que já não existe mais, onde vivia de samba e boêmia ao lado dos amigos Mato Grosso e Joca.
O filme surgiu a partir do curta-metragem, também dirigido por Serrano. Intitulado de “Dá Licença de Contar”, foi lançado em 2015 e conta com o mesmo elenco de protagonistas. Aborda as memórias de maloca em somente 17 minutos, deixando no espectador um gostinho de quero mais pelas histórias ali apresentadas.
“Sempre gostei dos sambas do Adoniran, desde pequeno fui ensinado a ouvir, então tenho uma relação afetiva porque as crianças acham legal esse jeito dele de falar errado”, explica o cineasta. “Pensando num filme que queria fazer no início da carreira ‘Saudosa Maloca’ surgiu como uma crônica perfeita do que é São Paulo e trazendo conflitos que acontece em qualquer grande cidade”, explica Pedro Serrano sobre o interesse pela vida do sambista e a vontade de contar as histórias por ele narradas em forma de música.
Em vez de concentrar em uma só canção do compositor, Serrano decidiu unir outras faixas de João Rubinato no curta-metragem, aprofundando-as posteriormente no longa. Devido a demanda do próprio público e do ator Gero Camilo, a ideia de fazer um filme com mais tempo de duração foi plantada no diretor. Após conseguirem o contrato de uma distribuidora para investir no projeto e colocá-lo para frente.
“Foi como um bom vira-lata não largar o osso”, brinca Gero Camilo sobre reencontrar o personagem Mato Grosso após quase 10 anos. “Fiquei muito em cima do Pedro, por isso a coisa do ‘não largar o osso’, dizendo para ele que o curta-metragem merecia virar longa”, revela.
“Então, fui paciente e ao mesmo tempo instigador do processo, porque gosto muito dessa história. Amo o Adoniran, amo o trabalho dele como sambista, poeta e cronista. Ele para mim é como Patativa do Assaré, no sentido de tê-lo como referência”, conta o ator cearense. “Ele é minha referência máxima de poesia, sabedoria, tudo num ser só, da simplicidade, de uma relação direta com a cultura popular”, pontua.
“Foi um caminho natural e não planejado. Como demora um certo tempo para produzir cinema no Brasil, no meio do processo produzi um documentário chamado ‘Adoniran, meu nome é João Rubinato’, foi uma maneira de estudar ainda mais o personagem”, diz Pedro. A produção foi lançada em 2018 e conta com a participação de Gero Camilo, também.
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Paulo Miklos, que interpreta Adoniran nas duas produções dirigidas por Serrano, também nutria admiração pelo paulista desde a juventude. “A obra dele já conheço desde a adolescência, porque minha formação passou muito pela Música Popular Brasileira”, conta. “Criar esse personagem foi bem interessante, porque Adoniran foi também uma figura criada pelo João Rubinato”, ilustra.
“É um personagem muito vivo na lembrança do brasileiro, o bigodinho, chapéu, gravatinha, terno, sempre bem alinhado. Ele parece resistir ao tempo como quem diz: ‘Eu não sou de agora, sou do passado. E de uma certa forma, ele é uma resistência de uma outra época, outra São Paulo”, elucida Miklos.
Para criar essa atmosfera poética imposta pelo próprio protagonista, o diretor, ao lado dos roteiristas Guilherme Quintela (Sintonia, Meu Amigo Hindu) e Rubens Marinelli (O Santo Maldito), procurou trazer trechos das músicas de Adoniran incorporados nas falas de cada personagem.
“A ideia foi criar um filme que falasse de uma São Paulo que não existe mais de um jeito fabular. Quando o Adoniran na sua memória afetiva lembra dessa cidade quando ele conta para o Cícero, voltamos para uma São Paulo onírica, de fábula, de uma certa magia, linguagem fantástica”, elucida Pedro.
Além de uma nostalgia, por meio das lembranças do sambista, a trama constrói um link com a realidade atual ao pautar a especulação imobiliária e a gentrificação, temas muito presentes nas composições de Adoniran.
“A obra do Adoniran segue muito atual e ele mesmo era um cronista crítico e agudo. Ele consegue uma dosagem muito especial de comédia com drama, ele costumava dizer que se não há tragédia não há samba. Ele consegue mostrar isso com um humor muito fino”, destaca o ator.
Esses alívios cômicos presentes no enredo ficam por conta do “adonirês”, como Paulo chama o modo de falar “errado” do personagem. “É um dos mecanismos que o Adoniran tem para trazer humor a essas histórias, que são sempre problemáticas”, salienta. Mato Grosso, interpretado por Gero Camilo, e Joca, feito por Gustavo Machado, complementam a leveza da história com seu duo dinâmico que remete à palhaçaria.
“Trabalhar os três, Gero, Paulo e Gustavo, era glorioso ver os três se divertindo em cena de verdade. Quase virava espectador enquanto estava dirigindo eles, é uma lembrança que guardo com carinho”, comenta Pedro. Gero e Gustavo se conhecem há 30 anos, os dois estudaram juntos na Escola de Arte Dramática da Universidade de São Paulo.
Para construir o personagem quase folclórico, Mato Grosso, Camilo usou a territorialidade. “Quando usamos de apelidos que são geográficos, territoriais, eles ganham conotação profunda. No preconceito básico, ralo e rápido, são considerados estereótipos. Quando aprofundamos essa territorialidade, construímos identidade ou seja arquétipos, que são mais densos por se tratarem de representatividade de fato”, explica.
“Alguém que se chama Mato Grosso está se identificando como um povo, cultura, uma multiplicidade de subjetividade que constrói cultura. Embora o filme seja uma comédia, eu, Paulo e Gustavo trazemos toda essa intelectualidade em ação dramática, comédia, risos e em coisas interessantes”, compartilha o artista.
Saudosa Maloca