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De que maneira a crise climática é retratada nas artes?
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Vida & Arte

De que maneira a crise climática é retratada nas artes?

A crise climática é uma realidade que necessita do combate de diversos agentes. Neste contexto, a cultura se fortalece enquanto potente vetor de mobilização e transformação
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Filme Protetores da Terra (Foto: One Planet One Future/Divulgação)
Foto: One Planet One Future/Divulgação Filme Protetores da Terra

Há pouco mais de dez anos, em 2013, a artista e diretora Anne de Carbuccia começou a criar e fotografar o que ela chama de "Santuários do Tempo", instalações artísticas situadas em diferentes regiões remotas espalhadas pelos continentes. Retratados em zonas como Yucatán, no México; Sibéria, na Rússia; e Amazônia peruana, no Peru, os registros das obras funcionam como pontos de comparação das mudanças climáticas.

O experimento revelou, uma década depois, que as consequências são preocupantes. Habitantes do Reino de Lo, no Himalaia, viram a zona repleta de geleiras ser cometida por períodos de seca, por exemplo. Este e outros processos são acompanhados por jovens que lutam para tentar salvar o meio ambiente, personagens que se tornaram centrais em cada zona e figuras importantes no filme "Protetores do Planeta Terra", resultado audiovisual da experiência de Anne, disponível desde o início de março na plataforma de streaming Prime Video.

Com imagens de entrevistas, fotografias e exposições, o documentário abre um debate decisivo: de que maneira as linguagens artísticas se colocam à frente da emergência climática que estamos vivendo? O questionamento que liga arte e meio ambiente, inclusive, não é ao acaso. Cada vez se torna mais evidente o papel artístico dentro do combate ao agravamento das problemáticas socioambientais. Uma evidência é a estruturação do grupo Amigos da Ação Climática Baseada na Cultura (GFCBCA), realizada como parte da Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas - COP 28 e co-presidida por Brasil e Emirados Árabes Unidos.

O anúncio da ação aconteceu em dezembro de 2023, durante a primeira reunião de Alto Nível do Diálogo Ministerial sobre Ação Climática Baseada na Cultura, em Dubai. Estiveram presentes o ministro da Cultura e Juventude dos Emirados Árabes, Xeique Salme bin Khalid, e a ministra da Cultura do Brasil, Margareth Menezes. "Um ativo tão forte quanto a cultura não pode ficar de fora do enfrentamento à mudança climática no planeta", enfatizou a ministra na época.

A titular da Pasta argumentou que as expressões culturais podem - e devem - ser ferramentas no caminho à conscientização ambiental, um percurso que ainda se desenvolve de forma lenta. De acordo com o cineasta Chico Guariba, idealizador da Mostra Ecofalante (ver quadro ao lado), esta visão vem sendo expandida nos projetos da área, assim como nas políticas públicas do setor.

Ele explica que, cerca de 20 anos atrás, o cinema nacional, por exemplo, era escasso de produções que tratassem sobre discussões ambientais. As poucas que existiam eram "relativamente precárias de linguagem cinematográfica". O cenário mudou com "a crise ambiental e política", agravadas em 2014 após o impeachment da então presidente Dilma Roussef. "Há uma mudança de tema no cinema brasileiro. Ele passa a abordar a questão socioambiental não só em ficção, mas em séries, em TV. Hoje a questão ambiental está presente em quase tudo, senão como tema principal, como tema de fundo, numa discussão de justiças sociais. Esses temas vêm emergindo, estão cada vez mais presentes na arte e no debate democrático da sociedade brasileira".

Esse movimento, acrescenta o cineasta, também é crescente no restante da América Latina. Em países como Colômbia, Peru, Argentina e Chile, há um aumento na quantidade de filmes que abordam tópicos como o desmatamento, o uso de combustíveis fósseis e os territórios dos povos originários, pontos que ganham projeções por meio de diferentes lentes e alcançam distintos públicos. "O Brasil está evoluindo agora para tratar dessas questões. Acho que a tendência é dar palavras para esses povos, é com eles que a gente vai aprender. A questão ambiental é um problema que revela conflitos, papel de empresas e governos. É uma associação de fatores", opina.

O contexto não poderia ser diferente, aponta Guariba: "a crise climática já está aí. Ela afeta todo mundo e vai piorar muito porque não está sendo feito nada". Ele também complementa que o debate se estende a assuntos sociais, econômicos e políticos. "O que tem contribuído para lançar a discussão são as proliferações de editais nacionais, estaduais e municipais. Eles têm uma suma importância nesse processo, porque a partir daí o dinheiro não depende das empresas. E tem cada vez mais, porque têm cotas para pessoas indígenas, pessoas negras, pessoas trans. As cotas são muito importantes para garantir essa diversidade de temas, isso tem garantido uma discussão do território e meio ambiente".

É importante também pontuar os entraves que podem surgir. Além dos desafios de angariar recursos para estes projetos, também existe uma preocupação em como o conteúdo deve ser repassado ao público. Este foi um dos desafios dos escritores Claudio Fragata e Janaína de Figuereido ao escrever "Sebastião", livro infantojuvenil cujo tema principal é a tragédia ambiental da cidade de São Sebastião, no litoral norte de São Paulo, em fevereiro do ano passado.

Ela detalha que o acontecimento foi traduzido para as páginas por meio da tradição literária, a partir da "literatura testemunho", caracterizada por ela como tentativas de narrar cenas traumáticas. Neste gênero, tem pouco espaço para metáforas e existe a necessidade de mergulhar nos sentimentos das vítimas. "As questões socioambientais fazem parte do nosso mundo contemporâneo, é impossível deixar de trazer essa realidade para os projetos artísticos. Nesse tempo de extremos, a arte nunca foi tão necessária! Em 'Sebastião', trouxemos o tema do recomeço como uma força que nos inspira. Não há futuro sem o ato de recomeçar", contesta.

O trecho dito por Janaina sintetiza bem a forma como ela enxerga a necessidade do fazer artístico dentro das iniciativas acerca da temática: a literatura, o cinema, a dança, o teatro, assim como as demais variações de linguagens, mobilizam por meio da sensibilidade. Mantêm um potencial de comunicação com a criação de narrativas que instigam sensações capazes de produzir movimento. "Acredito que a arte pode ser um caminho para criação de uma nova sensibilidade, capaz de construir uma ética do respeito e do cuidado. Por isso defendo o direito das crianças e adolescentes terem acesso à arte. A literatura nos fala sobre o mundo e o humano, nos acolhendo e nos possibilitando criar utopias. Penso ser esse o caminho para um projeto de transformação social e construção de um mundo melhor. O desastre socioambiental é parte de um sistema maior, cuja engrenagem nos aliena e nos mata, simbólica e literalmente", elabora.

 

Abertura da exposição Escuta Sensível das Plantas, da artista Lyz Vedra
Abertura da exposição Escuta Sensível das Plantas, da artista Lyz Vedra

Sentir para mudar

Corpo, arte e natureza. Este é o tripé que norteia a exposição "Escuta Sensível das Plantas", desenvolvida pela artista Lyz Vedra com curadoria de Lucas Dilacerda. Parte das exposições do Museu de Arte Contemporânea do Dragão do Mar (MAC - CE) oriundas do projeto Cena Ocupa, a mostra pretende atingir a "sensibilidade crítica" daqueles que a presenciam..

A pesquisadora relata que a experiência na graduação em Dança pela Universidade Federal do Ceará (UFC) trouxe o distanciamento da concepção de "corpo-máquina" e a aproximação da noção de integridade com a natureza. "Comecei a entender a dança de uma outra forma, não mecanizado, mas integrado com a energia, com a espiritualidade, através do nosso corpo. A partir desse momento, fui entrando em um processo criativo que tinha as plantas como parceiras de criação, então fui observando, cultivando, anotando, fazendo registros fotográficos, mas também de desenhos. Eu passei a criar", comenta Lyz.

Em meio ao desenvolvimento de pesquisa, Lyz adentrou um processo de transição de gênero e, organicamente, a identificação com as plantas foi aumentando. "Quando a gente passa a ter um contato maior com a natureza, com os ambientes naturais, a gente passa a olhar para si mesmo. Eu vou começar a olhar para as plantas como as minhas parceiras de aprendizagem e criação, porque eu olho para elas e vejo uma realidade parecida com a minha e das minhas amigas trans e travestis, uma realidade de violência. Uma violência de espaço social e de espaço urbano, sobretudo. Elas também são constantemente ameaçadas de morte. Também por conta da priorização dessa lógica que destrói em prol do progresso".

Esta relação de troca é também o que molda a atual exposição, um modelo de ecoperformance que nasceu como uma reação da crise climática e da crise da sensibilidade humana. "Os artistas no Brasil e no mundo estão pensando isso, estão levando para suas obras, levando para seus contextos de criação. Eu acredito que, assim como eu consegui fazer essa elaboração de pensamento e de prática junto com as plantas e passar a ver o mundo de uma forma diferente, eu acredito que essa atmosfera também busca proporcionar isso para quem está visitando a exposição".

Para Lyz, esse primeiro contato com a sensibilidade é chave na construção do que ela considera uma revolução de afetos. "A revolução dos afetos tem muito a ver com a crise da sensibilidade, vários artistas e autores da literatura atual, tem percebido e tem falado sobre. Muitas vezes, não se tem uma ideia de que a arte possa discutir determinados temas que são delicados e, na verdade, são urgentes. Muito pelo contrário, a arte pode ter esse lugar, e acho que deve ter esse lugar. Sejam bonitos, feios, incômodos, é assim que a gente vai crescer. Enxergar a arte na valorização da arte, é importante frisar esse espaço incrível e produtivo para a revolução dos afetos", elabora.


Mostra "Escuta Sensível das Plantas"

Quando: terça a domingo, das 10h às 12h

Onde: Museu de Arte Contemporanea do Ceará (rua Dragão do Mar, 81 - Praia de Iracema)

Gratuito

 

Mostra Ecofalante já exibiu filmes como
Mostra Ecofalante já exibiu filmes como "Escute, A Terra Foi Rasgada", de Cassandra Mello e Fred Rahal

A crise climática na arte

Mostra Ecofalante

Cinema

A Mostra Ecofalante de Cinema Ambiental é um evento audiovisual sul-americano que faz parte da Organização Social Ecofalante. A OSC atua nas áreas de cultura, educação e sustentabilidade. É responsável pela produção de filmes, documentários e programas de televisão de caráter cultural, educativo e socioambiental. Também oferece consultoria, formação de professores, exibições e debates em escolas, universidades e aparelhos culturais.

Na décima terceira edição, que acontece em São Paulo no mês de junho, o evento reúne três sessões competitivas: Competição Latino-americana, Territórios Brasileiros e o Concurso Curta Ecofalante.

Mais infos: ecofalante.org.obr


Sebastião

Literatura

Escrito por Claudio Fragata e Janaína de Figueiredo e ilustrado por Rodrigo Mafra, o livro é protagonizado por Sebastião, que recebeu esse nome em homenagem à cidade onde ocorreu a tragédia. A família do narrador se salvou, mas perdeu tudo na tempestade que devastou São Sebastião, no litoral norte de São Paulo, em 19 de fevereiro de 2023. O menino, os pais, irmãos e avô conseguiram escapar, atentos que estavam aos sinais emitidos pelo cachorro Biró.

Quanto: R$ 80

Onde adquirir: www.aletria.com.br

Rastros

Teatro

O espetáculo "Rastros" integra o repertório do Curso de Princípios Básicos (CPBT) do Theatro José de Alencar (TJA). A montagem reflete uma crítica acerca do colapso ambiental em Santa Quitéria. A sinopse acontece em Cajueiro, comunidade entrelaçada com a natureza. Um horizonte acinzentado sinaliza uma mudança de trajetória. Com passado, presente e futuro em jogo, as pessoas buscam justiça ao passo em que tenta sobreviver e retomar as rédeas da própria história.

Mais infos: @espetaculosrastros

 

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