"Eu sempre pensei em dançar até quando eu quisesse. Até quando meu corpo conseguir dar conta", afirma Silvia Moura, multiartista que atua por meio de performances tanto no teatro quanto na dança. Ela estará na 14ª Bienal Internacional de Dança do Ceará discutindo como as políticas públicas podem contemplar os artistas mais velhos.
A programação faz parte do seminário "Envelhecer na Dança - o que perdura nos corpos?", que irá debater o etarismo na dança e acontece dia 4 de abril no auditório da Adufc, a partir das 10 horas.
"Quando completei 50 anos, essa questão da idade começou a pesar. As pessoas passaram a debochar, soltando piadinhas sobre eu ainda estar nos palcos ou concorrendo em editais. Coisas dúbias que não sabia se estavam fazendo piada, dizendo para eu parar ou me elogiando", conta Silvia. "Isso começou a me incomodar e passei a colocar isso em cena", conclui.
Para além dos comentários alheios, a pandemia de Covid-19 e a perda da mãe, em setembro de 2020, foram outros dois fatores que a fizeram voltar esse olhar para o desejo de bailarinos mais velhos continuarem dançando. "Quando minha mãe morreu comecei a calcular quanto tempo de vida tinha e isso me apavorou. Tudo pareceu urgente no sentido de aproveitar os dias que ainda tenho para viver", destaca.
Silvia começou a carreira ainda criança, iniciando os estudos em balé clássico com a "maitre" Ana Virginia Valente, na década de 1970. Assim como Wilemara Barros, que teve a formação na Escola do Sesi-CE, com Dennis Gray e Jane Blauth, e no Colégio de Dança do Ceará, sob orientação dos mestres Flávio Sampaio e Ernesto Gadelha. Atualmente, integra a Cia Dita e é professora do Curso Técnico de Dança da Escola Porto Iracema das Artes.
"São poucas as bailarinas que perduram na cena e cada vez mais o mercado pede bailarinos, bailarinos, crianças prodígios", destaca Wilemara Barros, multiartista que também estará na Bienal. "Na dança clássica, por exemplo, quanto mais jovem, mais papéis principais e mais aparições te oferecem. E ao envelhecer, sai o príncipe e entra o rei, e só a 'mise en scène' (encenação), foi embora o virtuoso", explica.
"Então, é um pouco cruel essa disparidade assim pela idade", a também atriz salienta. Barros apresentará no evento o solo "Preta Rainha". " É como se nós estivéssemos atrapalhando a rapidez com que eles querem passar, estamos atrapalhando o fluxo do corre-corre do mercado", pontua Silvia Moura.
Inserida numa sociedade capitalista, a indústria da dança segue o movimento de sempre apresentar algo novo, seja através de artistas ou espetáculos. Não à toa, competições mundiais, como o Youth America America Grand Prix (YAGP), que reúne tanto gêneros clássicos quanto contemporâneos, só permite a participação de bailarinos de até 19 anos. Já o Prix de Lausanne aceita artistas na faixa etária de 15 a 18 anos.
"Só que eles precisam aprender a lidar com isso, porque daqui há 7 anos seremos maioria, então é necessário que nos respeitem, acolham e facilitem nossa vida", diz Moura. A multiartista se refere aos dados do último censo realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), feito em 2022.
Entre os anos de 2010 a 2022, a porcentagem da população idosa no Ceará cresceu em 42%. Os dados acompanham o resto do Brasil, cujo número de pessoas com 65 anos ou mais, chegou a 10,9% da população.
Por outro lado, o número da população com até 14 anos é menor do que o apontado em 2010, ainda segundo o IBGE. A faixa etária diminuiu em 17%, indo de 2.188.543 a 1.802.435 crianças e adolescentes. Ou seja, a tendência é que a população de pessoas mais velhas continue aumentando.
"Temos um longo caminho aí para trilhar e pensar de que forma esse corpo que envelheceu borrando suas técnicas, pode ser respeitado e a dança ressignificada", destaca Wilemara. "Esse bailarino num determinado momento deve ressignificar essa dança. O corpo velho traz experiências, vivências e marcas Mas mesmo assim ele tem sempre algo para dizer", enfatiza .
Ambas defendem que haja um olhar para o desejo desses artistas de seguir atuando dentro de suas possibilidades. "É importante que esse bailarino não se dessa construção. Ser uma artista que saiba olhar para dentro de si com generosidade, não deixar escapar toda uma vida vivida na cena", alega Barros.
"Poder colocar tudo isso em outro lugar, mas com a mesma importância. E que esse bailarino seja respeitado da mesma forma, de um modo digno também", argumenta a bailarina. "Nós precisamos cada vez mais criar projetos de acolhimento, de atividades para que todos possam envelhecer bem e a arte é fundamental para isso", afirma Silvia.
"Temos a dança contemporânea, que é um pouco mais flexível e que te dá a possibilidade de quanto mais velho mais coisas você tem para falar", aponta Wilemara para os caminhos possíveis dentro da arte para aqueles que ainda não querem deixar os palcos.
"Um corpo mais velho já causa impacto no palco, meu cabelo é branco, longo, algo que é raro. Tocar nesse assunto, escrever é relevante. As pessoas dizem que não pareço ter 60 anos, mas faço questão de dizer porque uso isso e a forma como estou envelhecendo como material de cena", conta Silvia.
Também com a mesma idade de Silvia, Wilemara partilha a abertura às possibilidades que a dança oferece, nas formas como ainda pode estar em cena. "O meu corpo e a minha dança naturalmente foram aportando para o lugar onde eles queriam estar", salienta Wilemara Barros.
"Os meus cabelos brancos fazem parte da minha história, e até parafraseando a cantora Maria Bethânia, que ela diz, as minhas rugas são minhas, eu os mereço. Eu acho isso fantástico", defende Barros.