Longe da brisa da Capital, outros ventos sopram Ceará adentro. Perto da pluralidade de mestres da cultura, outras cores vão na contramão da imagem de um Interior árido. Há dois anos, as artes cearenses encontraram abrigo: o Centro Cultural do Cariri Sérvulo Esmeraldo.
Sob gestão da Secretaria da Cultura do Estado do Ceará, em parceria com o Instituto Mirante, o espaço multicultural tornou-se um centro de convivência, inclusão, aprendizado e preservação da regionalidade. Com uma grande variedade de instalações, espetáculos, aulas gratuitas e rodas de conversa, o local se mantém vivo como fomentador da cultura.
O Centro Cultural está localizado no bairro Gizélia Pinheiro (Batateiras), considerado região periférica do Crato. A existência do equipamento ocupou a região com riqueza artística e espaços de lazer para a população. Segundo dados divulgados pela instituição, 344.651 pessoas passaram pelo espaço durante os 459 eventos culturais e educacionais que foram realizados em 2023.
Em visita guiada ao espaço, o Vida&Arte foi convidado em março para conhecer o Centro Cultural do Cariri. A rota começou pela exposição aberta que fica logo à entrada do equipamento, a "Prenascimento". A instalação conta a história de construção do espaço desde suas primeiras formas físicas.
Antes de ser um centro de cultura, o espaço, que tem mais de 50 mil metros quadrados, já foi uma fazenda, um seminário de padres e um hospital. As obras dispostas nesta exposição contam essa história e os autores dessa mostra são os próprios trabalhadores que serviram na construção do espaço.
Em 2021, os artistas plásticos Luiz Santos e Carlos Henrique Soares buscaram profissionais que trabalhavam na construção do Centro Cultural do Cariri e, por meio de escuta e observação, fizeram dos objetos da obra e das próprias imagens dos colaboradores linguagens de arte. A partir disso, foram produzidos 5 filmes, mais de 200 retratos em lambe-lambe e 34 obras de arte.
"Sou morto e vivo aqui dentro (no Crato). Desde criança eu já andava por aqui, até quando era hospital, porque eu me internei aqui", afirma o multiartista Carlos Henrique sobre seu sentimento de pertencimento em relação ao espaço do Centro Cultural.
"Eu disse para Luiz que eu queria fazer ex-libris com os trabalhadores e ele disse: 'Como você vai fazer ex-libris com pessoas que não lê?'. Eu disse: 'E a leitura visual, não vale?'. Foi assim que decidimos fazer xilogravuras com os colaboradores da obra", explica Carlos sobre o mural com ex-libris expostos.
A peça é feita originalmente como uma espécie de selo a ser colado no livro indicando seu pertencente. No trabalho desenvolvido por Carlos, xilogravuras foram utilizadas para esse trabalho. Cada trabalhador dedicou um ex-libris a outro até reunir uma abundância de modelos, expostos na "Prenascimento".
Em diversos espaços da mostra, há fotos dos colaboradores trabalhando na construção do equipamento, que permite que o visitante do espaço sinta-se ainda mais próximo da história de nascimento daquele espaço cultural. A experiência propõe uma volta ao passado da grandiosa estrutura do equipamento.
Pedrusa
A obra "Pedrusa", apelidada carinhosamente pelo seu autor, Carlos Henrique, de "Cabelo de Cocada", se inspira na imagem na deusa da mitologia grega Medula e está exposta na "Prenascimento".
"Na obra, os trabalhadores chamam isso (pedaços de concreto) de cocada. Isso aqui separa a parte interna dos ferros dos pilares de sua parte externa. Eu fiz essa instalação com a Predusa com pedaços dessas cocadas que foram jogadas de um caminhão na obra", conta o artista.
O corpo da mulher com cabelos de obra já "convivia entre os colaboradores da construção do Centro Cultural" e representa, para Carlos, o corpo que trabalhava naquele espaço. "E por que uma mulher? Porque na obra não tinha mulheres trabalhando como servente", explica o artista, em tom crítico.
Jogo da memória de lambe-lambe
No centro da instalação "Prenascimento" está uma mesa com interatividade que expõe mais de 300 fotografias de lambe-lambe. O trabalho trata-se de um jogo da memória com imagens de trabalhadores da obra, feitas em positivo e invertido de cores para montar o jogo.
Carlos Henrique, que também é curador da exposição, conta que houve diferentes repercussões entre os funcionários da obra quando souberam que o prédio que erguiam seria um centro de cultura. Um deles, segundo o artista, foi questionado por uma idosa sobre a razão de construir um espaço de arte ao invés de um hospital. A resposta que ela recebeu pelo operário foi: "Um centro cultural ajuda as pessoas a não ficarem doentes".
Xilambulando
"O carrinho foi pensando nos vendedores ambulantes de tapioca, de cuscuz mesmo", revela Carlos Henrique. Ele conta que a obra, uma barraca ambulante de xilogravuras, recebeu o nome de "Xilambulando" como uma brincadeirinha em referência a "xilogravuras ambulantes".
A peça é uma referência direta do processo construtivo artístico dele com os operários de obra durante a construção do equipamento cultural.
Centro cultural, uma "necessidade"
Sobre o impacto social e as atividades desenvolvidas pelo Centro Cultural do Cariri Sérvulo Esmeraldo, o Vida&Arte conversou com Rosely Nakagaha, gestora do equipamento, desde seu planejamento.
O POVO - Como foi a escolha de Sérvulo Esmeraldo para ser homenageado com o nome do centro?
Rosely Nakagaha - Essa política é uma homenagem que também existiu nos outros equipamentos inaugurados recentemente, como foi o Museu da Imagem e do Som, que leva o Chico Albuquerque como homenageado. E o Sérvulo Esmeraldo é um artista do Cariri. Ele nasceu no Crato, todo ano tem um festival que homenageia o Sérvulo Esmeraldo, então a gente achou uma justa homenagem. Ele é um artista reconhecido no Brasil todo e merece o nome perpetuado ali no Centro Cultural.
OP - É possível afirmar que, nesses dois anos de atividade do Centro Cultural, houve uma mudança social na região?
Rosely - Essa pergunta é complexa, porque, na verdade, o Centro Cultural vem quase como uma urgência em relação ao que acontece na cultura do Cariri. É um lugar muito rico, com tradição, com manifestação, com formação cultural ancestral, e era quase uma necessidade que o Centro Cultural fosse construído, não só porque existe uma cultura própria que precisa de um lugar para se manifestar, para se encontrar. Os mestres todos têm seus terreiros, mas a consagração e o encontro deles precisa de um espaço a altura. Um espaço de lazer com essa qualidade, segurança, infraestrutura, sombra, árvores, um parque mesmo, verde, era uma necessidade. Então, quando o Centro Cultural foi aberto, que foi entregue no dia 1º de abril, ele foi acolhido já como uma coisa de pertencimento quase que natural, uma decorrência natural por merecimento, digamos assim. Isso faz uma transformação no autorreconhecimento, na valorização de si próprio, mostrando que o que se produz ali é importante, que a universidade também agora tem um lugar para a sua prática.
OP - Na sua concepção, o que uma exposição como a "Encarnar", de Efrain Almeida, representa para o equipamento?
Rosely - O Centro Cultural do Cariri tem como política principal, objetivo, meta, valorizar os artistas e a arte produzida na região. A escolha do Efrain é justamente porque é um artista do Nordeste, que construiu todo o processo artístico a partir da observação do pai dele, um marceneiro, que nunca teve reconhecimento especial por isso. Ele faz no trabalho dele um processo de pesquisa de todos os saberes tradicionais e essa exposição é resultado de três anos de intensa pesquisa, de convivência com os mestres artesãos do Cariri.
OP - Quais são as estratégias para chamar atenção de pessoas de fora para o equipamento?
Rosely - Nós convidamos vários escritores, artistas visuais, fotógrafos, os formadores de áreas técnicas, como o pessoal que trabalha com arquivo, com o restauro de obra de arte, com cenógrafo, bailarino, diretor de teatro. A gente convida muita gente da cidade, da região. Mas também convidamos os de Fortaleza, do Rio de Janeiro, de Pernambuco, da Paraíba, desde que essa pessoa possa ser uma elo de ligação com quem trabalha no Cariri e que possa também ir até Pernambuco, Recife, Fortaleza, São Paulo, Rio de Janeiro, num intercâmbio. E esse intercâmbio não só leva o profissional, como leva toda a experiência que esse profissional tem de vivência na região do Cariri. A gente agora brinca que o Centro Cultural do Cariri é o "Centro Cultural do Quero ir", porque todo mundo que conhece fala: "eu quero ir para o Cariri". Então, sempre que a gente recebe alguém, a gente faz questão de que esse alguém que veio também leve um artista da região. E isso está ajudando muito a tornar visível a produção da nossa região. Isso é mais do que trabalhar só com a difusão na mídia ou no jornal. É uma troca efetiva de saberes, que é uma dinâmica que já acontece no próprio, mas que a gente está agora ampliando para fora do território.
OP - Que relevância o Centro Cultural tem para estudantes do Cariri?
Rosely - Nós temos essa grande preocupação com a formação básica de educação, porque a cultura e a educação são fundadoras de autoestima, de confirmação de valores. Ela é uma complementação da sua formação com caráter pessoal. Esse programa de trazer as escolas não é só para os alunos, é também para a escola, para o diretor, para o professor, para que eles conheçam a nossa infraestrutura de oficinas, de biblioteca, de espaços cômodos para fazer reuniões, para fazer exercício, para dança, para teatro, para que a escola possa adotar o Centro Cultural como formação complementar.
OP - Mesmo localizado distante do centro de Crato, a ocupação do Centro Cultural é gigante. Qual a estimativa de pessoas em um final de semana comum no equipamento?
Rosely - Aos sábados e domingos, a gente fica entre 2 mil e 3 mil pessoas, em média. Ele é bem acolhido, é bem visitado. Logo que a gente abriu, há dois anos atrás, já recebíamos 500, 600 pessoas.
O que fazer no Centro Cultural do Cariri Sérvulo Esmeraldo
Além das mostras disponíveis no Centro Cultural do Cariri, o espaço também oferece outras formas de consumo de arte e de lazer. Com funcionamento de quinta-feira a domingo, o equipamento cultural também oferece programas de promoção da saúde, local para prática de esportes, diálogos sobre conservação do meio ambiente e práticas sustentáveis, ações de incentivo ao universo do brincar, fomento ao empreendedorismo, acesso a saberes ancestrais e intercâmbio artístico.
No amplo espaço de mais de 50 mil metros quadrados, estão disponíveis anfiteatro para ensaios e projeções de cinema, teatro escola, residências artísticas, salas de aula e ensaio, reserva técnica, restaurante escola, café e um planetário, que está em processo de estruturação.
Há ainda a área externa do Centro Cultural, apelidada de "Bosque" por frequentadores. Essa área verde possui pistas de skate, brinquedos, praças, areninha e quadras de vôlei; que ficam abertos ao público. Na visita feita pelo Vida&Arte ao espaço, foi dito que o ambiente é um verdadeiro "Parque Ibirapuera" do Crato.
Fotos e pedidos de casamento, piqueniques, confraternizações, comemorações em família… tudo pertence ao abraço do bosque do Centro Cultural do Cariri Sérvulo Esmeraldo. Além disso, é um espaço onde turistas e caririeneses podem aproveitar para fazer "comprinhas culturais" nas feiras que se instalam na área verde em dias de programação.
Exposição "Terra em Transe"
Disponível no Centro Cultural do Cariri até o final de maio, a exposição "Terra em Transe" chama atenção pela forma imersiva de prender a atenção do visitante em reflexão sobre a violência do Brasil. A mostra tem curadoria de Diógenes Moura e cerca de 700 imagens de mais de 70 fotógrafos brasileiros.
"Terra em Transe" mostra as contradições da sociedade e política brasileira com vários retratos que mostram realidades em diferentes períodos do país. Não é incomum que o público se sinta fragilizado ao reviver momentos brutais, como a Covid-19 e os rastros de mortes que aconteceram no período da pandemia.
O impacto da mostra é potencializado pelos textos de Diógenes Moura, que são incisivos em retratar o Brasil como um país-continente desigual, preconceituoso e violento.
Quando: até 30 de maio
Centro Cultural do Cariri Sérvulo Esmeraldo