Antes mesmo da seleção oficial do 77º Festival Internacional de Cinema de Cannes ser anunciada, já era enorme o burburinho sobre "Megalopolis", de Francis Ford Coppola, autor responsável por filmes emblemáticos como "O Poderosos Chefão" e "Apocalypse Now".
A expectativa não era apenas porque se tratava de um misterioso novo projeto do clássico diretor americano, mas porque rondavam relatos de que as sessões testes desanimaram as distribuidoras que "não sabiam como vendê-lo". Como pode o Coppola, com quase 70 anos de uma carreira repleta de sucessos de crítica e bilheteria, ter dificuldade para lançar um filme? Na semana passada o filme ganhou seu primeiro choque de realidade com a estreia na competição pela Palma de Ouro em Cannes.
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Na sala de cinema, de repente, a tela se apaga. Do nosso lado surge um homem com um microfone e uma luz é subitamente acesa em sua direção. Será que veio anunciar que a projeção deu problema? Não. Ele olha para a tela do cinema e conversa com o personagem de Adam Driver, que está lá atento para lhe dar uma resposta.
Então, a luz apaga, o homem sem identidade sai da sala e o filme volta à projeção. Por que Coppola não colocou essa pergunta no próprio filme e inventou essa interação ao vivo irreproduzível quando - e se - o filme for lançado comercialmente? A resposta devia ser a razão de sua genialidade, mas é contraditoriamente um sinal de seu limite.
Insistentemente, "Megalopolis" quer ser um espelho imediato desta nossa realidade ao olhar para a América dos EUA como se filmasse a queda do império romano. "Nova York" se chama "Nova Roma" e o colapso da população confronta as forças políticas que estão em lados opostos apesar de representarem a mesma ruína - de um lado o prefeito Franklyn Cícero (Giancarlo Esposito) e do outro, Cesar (Adam Driver), um arquiteto com o poder de parar o tempo que sonha em reconstruir a cidade dos sonhos. Mas para quem é essa cidade?
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Se por um lado o filme constrói com fôlego invejável uma fábula bastante elétrica onde o poder não passa de uma caricatura frágil, por outro a trama perde a magia quando só sabe ser literal - a aparição de líderes extremistas como Adolf Hitler e a narração da história com textos lapidados em mármore, assim como o citado momento em que uma pessoa real interage do lado de fora da tela, são cenas em que Coppola não nos dá qualquer outra margem de interpretação a não ser esta, repetindo que sua história é um delírio que imagina o mesmo mundo em que estamos.
Este universo vive no extremo - cenários, roupas e personagens, é tudo alarmado para ser um absurdo, como se a capital de "Jogos Vorazes" fosse multiplicada. Tudo isso para criar a sensação de uma realidade que tanto está no passado quanto no futuro, num tempo em que a civilização não consegue mais fugir do labirinto em que está condenada.
A queda da linha de fogo sobre a cidade enquanto a sombra de pessoas dançando são projetadas nos prédios é um exemplo de uma estética que não esconde sua plasticidade, sua textura de fábula, como se aquela cidade nem existisse, mas fosse apenas um devaneio. Toda cidade, assim como o dinheiro e todas as regras civis, não são apenas ideias? Numa madrugada, o prefeito acorda assustado após sonhar com uma nuvem que furtava a lua com a mão. Em outro momento, vemos uma espécie de "Estátua da Liberdade" se mover como se tivesse vida para, depois, se estraçalhar.
Coppola está, de fato, inventando algo irreconhecível não apenas diante da sua filmografia, mas principalmente no contexto de um "cinema comercial" americano que também está ruindo sob as mãos das franquias, remakes e eternas continuações. "O artista é o único que pode parar o tempo, você me disse", comenta a filha do prefeito (Nathalie Emmanuel) no que talvez seja seu momento mais bonito de interação com a dita "realidade", onde Coppola faz o mesmo para enquadrar na sua loucura o mundo em que vive.
Irreverência e impulso, no entanto, são tão grandiloquentes que a constante ironia da sua trama logo nos pega pelo cansaço de um tédio sem fim - se comecei o filme boquiaberto com sua guinada explosiva, no terço final tudo parecia não passar de um esquete prolongado, dependendo de uma história que gira em círculos para constatar o que já está constatado no desastre do poder.
Apesar de tudo, "Megalopolis" já é em si um acontecimento inesquecível porque, perto dos seus 90 anos, Coppola se recusa a pensar no fim do seu cinema e no fim do mundo sem artistas. O barulho do seu gesto é tão grande que parece improvável o júri, presidido pela Greta Gerwig, não lhe separar algum reconhecimento na premiação que acontece no próximo sábado, dia 25. Quem sabe não vem aí uma terceira Palma de Ouro? Depois que Ruben Ostlund venceu duas vezes por filmes assustadoramente bobos, dá para acreditar em qualquer coisa.