“Vai ficar tudo bem”, revela como se fosse capaz de ver o futuro. A garota, do outro lado, precisa aceitar. É tudo muito simples neste novo filme da Andrea Arnold, dos gestos mais comuns até o delírio sobrenatural. À primeira vista, pode até parecer que esta história de uma garota deslocada da sua família é uma clássica jornada de amadurecimento, os chamados “coming-of-age”, mas o ponto mais dramático deste filme quer nos levar para outro lugar.
Bailey tem 12 anos, mas seu pai tem menos de 30 e moram juntos numa ocupação abandonada. Andrea é esperta na construção desse contexto com um grau alto de realismo, trazendo-nos inclusive a memória de tantos outros filmes que contrapõem a crueldade da escassez e da vulnerabilidade urbana com a ingenuidade de alguém que não pediu por nada disso. Mas diferente da criança esperançosa de "Projeto Flórida" (2017), Bailey (Nykiya Adams) tem seus sonhos muito borrados. Ela quer mesmo fugir? Quando seu pai (Barry Kheogan) lhe surpreende com a notícia do seu casamento, ela se sente ainda mais desamparada.
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Assim como a Dorothy que segue pelos tijolos dourados ou a Alice que cai na toca do coelho, Bailey sai na rua e encontra alguém que talvez também esteja despencando – Bird, vivido por um Franz Rogowski ainda mais cativante. Ele está lá pela cidade porque há muito tempo se perdeu de seus pais. Os dois são como os pombos que andam mais do que voam, na cidade, em busca das migalhas.
A partir desse encontro se desenha uma infinidade de rotas, podendo usar inclusive todo o simbolismo dos pássaros, mas “Bird” é real demais para preferir os sonhos. Então, tudo que tem de acontecer, no que é cruel e no que é sublime, precisa acontecer aqui mesmo, do lado de fora do mundo. Quando tudo parece em ordem, de repente algo explode, uma só cena, que vira o jogo. Então, também de repente, me percebo chorando porque fui lembrado de que o cinema existe.
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No seu filme anterior, também exibido em Cannes, Andrea filmou a vida de uma vaca do nascimento até o seu abatimento quando seu rendimento comercial deixa de ser “sustentável”. É um documentário violento e muito assustador, mas que, ao mesmo tempo, reafirma a razão pela qual Andrea é cineasta, porque ela entende o jeito que só os filmes podem olhar o mundo e ver o que ele esconde de maneira tão escancarada. Neste pequeno grande filme que é “Bird”, a equação é virada do avesso porque faz com que a melancolia dos esquecidos possa ser também um delicioso segredo.