"Por mais que seja importante ter mulheres negras no mercado, não podemos estar somente como uma cota. Só como alguém que está ali para validar a diversidade daquele espaço, precisamos ser lidas, consideradas e escutadas dentros dos nossos fazeres, especificidades, dentro dos que nos torna única", aaponta Ana Aline Furtado, uma das curadoras da exposição "Anas, Simôas e Dragões".
A mostra, em exibição até esse domingo, 28, no Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura (CDMAC), resgata o protagonismo de mulheres negras na luta contra a escravização de seu povo. Personalidades como a rainha Nzinga de Angola, também conhecida como Ana de Souza, que lutou com o domínio português em Angola, e Preta Tia Simôa que liderou a libertação de pessoas escravizadas em Fortaleza por meio de um levante na Praia de Iracema.
Por essa razão, a exposição traz em maioria obras produzidas por artistas mulheres do Estado, como Adriana Clemente, Alexia Ferreira, Cecília Calaça e Paula Trojany. Blecaute e Clébson Francisco completam o acervo com suas produções. "Entender que quando trazemos para cá mulheres como Ana, Tia Preta Simoa, estamos fazendo uma reparação histórica, estamos abrindo um caminho para que artistas tragam outras perspectivas", destaca Furtado.
"Compreender que nem todas as mulheres negras estão produzindo as mesmas coisas e nem vem dos mesmos lugares, isso é muito importante para marcar a diversidade e um diverso que vai além disso", continua a também advogada de formação. "A Denise Ferreira da Silva fala que a representação é um beco sem saída, porque sempre que tem um lugar que pode nos tornar uma imagem fixa, não podemos nos tornar outra coisa', salienta.
Para a também artista, a exposição não se torna só uma forma de reparação histórica por resgatar a história de pessoas pretas, mas por propor pontos de vistas distintos sobre ela. "Pensar isso nos faz encontrar com o gesto da ancestralidade, e reconhecer essa força no invisível que atua em nosso corpo faz com que a gente se reencontre nesses locais e perceba que estamos fazendo uma reparação histórica que não deveria ser responsabilidade nossa", enfatiza.
"Entender que o gesto ainda recai sobre as mulheres negras o papel de lutar e reparar as injustiças que outras mulheres passaram antes de nós. Então compreendemos a exposição como uma primeira ação que precisa se tornar contínua, ampliada, para podermos falar de mercado, condições de acesso, de obras, sustento e sustentabilidade", finaliza Ana Aline.
Co-curadora da mostra, Cícera Barbosa argumenta que o acervo não quer trazer a arte no sentido mercadológico. "Falar de artistas nesse sentido clássico do mercado não foi a única forma que pensamos de trazer essas obras. Nós conseguimos esgarçar essa categoria para dizer que quem faz arte não faz qualquer arte, faz uma arte engajada, comprometida, com o entendimento de histórico da estrutura racial do País".
"Desde a (Cecília) Calaça que é uma geração, que traz objetos, as bacias, a areia, a água para falar da afro travessia, da Senhora dos Pássaros na Pedra Sabão. Você vai ter outra técnica como a da Alexia (Ferreira), vulgo Colagem Negra, que é a da colagem e mais uma técnica como a da Adriana de uma intervenção com as folhas de papel que vai questionar o currículo acadêmico e costura, com os estandartes", exemplifica a também historiadora.
Para a pesquisadora, "o protagonismo de mulheres negras na arte não é simplesmente entretenimento, também é discurso político". Em razão disso, o texto de curadoria da exposição se coloca como um manifesto. "Porque tudo é uma movimentação política, de encontrar esse sujeitos dos vários tempos", explica Cícera.
"Então os artistas que estão aqui, eles estão circulando na Cidade, no País, internacionalmente inclusive, mas não é só sobre eles enquanto sujeitos. Porque esse tipo de arte só se faz inspirado na ancestralidade, só se faz pensando numa dimensão muito maior do que um entendimento de uma arte mais capitalista", completa a curadora.
Exposição "Ana, Simôas e Dragões"
Quando: até este domingo, 28 de julho de 2024, das 13h às 18h
Onde: Museu de Arte Contemporânea do Ceará, no Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura (rua Dragão do Mar, 81 - Praia de Iracema)Gratuito
Mais informações: No site www.dragaodomar.org.br e no Instagram @dragaodomar
Arte é coisa de preto! Conheça 3 artistas negros e periféricos de Fortaleza
Gustavo Pereira, 30 anos, é um rapper mineiro que chama atenção pelas fortes críticas sociais presentes em suas músicas, repletas de rimas afiadas e temas marginalizados. Conhecido internacionalmente como Djonga, ele representa a exceção de um mercado que ainda carrega preconceitos e estigmas com artistas pretos e periféricos.
A falta de reconhecimento, oportunidade, números reduzidos nas redes sociais, ausências de políticas públicas são algumas das dificuldades relatadas e enfrentadas diariamente por quem tenta (sobre)viver da arte em comunidades periféricas.
Como afirma Djonga na música "Ladrão": “Me diz a fórmula pro tal sucesso, já que talento não garante view”. Diante dos relatos, O POVO selecionou três pessoas pretas de Fortaleza que tentam ganhar a vida através da arte, do talento e do afroempreendedorismo.
O primeiro personagem dessa história é Blecaute. "Cria" do bairro Serrinha e estudante de Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará (Uece), o cearense de 23 anos busca concretizar os estudos e seus ideais políticos através das artes visuais.
Ele procura, por meio de seu processo artístico, criar imaginários de felicidade e glória para além da luta e da dor na periferia de Fortaleza. “Eternizo meus amigos e meu bairro em reflexões acerca da realidade, mesclando filosofia, arte e política”, afirma o artista.
Carlos Xavier de Araujo, nome de batismo do pintor Blecaute, conta que seu primeiro contato com a arte surgiu ainda na infância assistindo o anime “Dragon Ball”. Ele relata, contudo, que pela falta de referências em seus ciclos, acabou se afastando da arte.
“Minhas únicas referências eram as aulas de artes na escola, tive um afastamento das artes por acreditar que só era belo aquilo que saia dos livros, aquele padrão de beleza em pinturas e esculturas”, afirma.
Foi somente em 2019, por meio de um aplicativo de design para celular, que o talento artístico que sempre esteve com Blecaute pode se manifestar novamente.
A partir disso ele começou a produzir ilustrações digitais e atualmente, em 2024, está trabalhado com produções à base de tinta acrílica e óleo sobre telas, além de criar animações, colagens e murais.
Fundamentado nas suas vivências e na missão de tornar a arte possível para pessoas semelhantes a ele, a trabalho de Blecaute aborda temas como negritude, ancestralidade e liberdade, seja como questionamentos ou afirmações.
O propósito maior do artista é não apenas aproximar as pessoas negras da arte e exposições, mas aproximar também as artes de temáticas relacionadas a população negra e periférica.
Em sua carreira o artista registra participações nas exposições coletivas: “FUNK: Um grito de ousadia e liberdade”, no Museu de Arte do Rio de Janeiro, “Anas, Simõas e Dragões: Lutas negras pela liberdade”, no Museu de Arte Contemporânea do Ceará e também no “75º Salão de Abril”, na Casa do Barão de Camocim.
Blecaute foi um dos sete artistas visuais selecionados para o Prêmio da Música Brasileira 2024. No evento, suas artes foram projetados durante apresentações de Chico César, Alceu Valença e Rico Dalasam.
Além de projetos nacionais nos próximos meses em São Paulo e Pernambuco, o cearense terá sua primeira exposição internacional na Espanha em outubro.
Na Capital seus trabalhos podem ser vistos na Casa Barão do Camocim e no Museu de Arte Contemporânea do Ceará, o artista também participa como curador na Galeria Chico da Silva, na SecultFor, intitulada “Sobre o Amor”.
Para saber mais sobre o trabalho do artista autodidata, independente, preto e periférico, acesse as redes sociais @6lecaute.
Aline Martins, 32 anos, é artista plástica e aquarelista da Barra do Ceará. Seu processo artístico começou durante a pandemia de Covid-19 quando Aline começou a explorar a aquarela de forma autodidata, sem pretensão após comprar um estojo do material. Inicialmente, ela utilizava a aquarela como uma forma de alívio no período de isolamento, criando cartões postais para amigos.
O que surgiu como uma válvula de escape, começou a ganhar outros rumos a partir do compartilhamentos das produções nas redes sociais. A repercussão das pastagens ocorreu com uma série de elogios e recomendações para que Aline passasse a vender suas obras e se profissionalizar no segmento.
Um ano depois, a cearense fundou a “Arte Serendipity”, perfil profissional nas redes sociais de onde tirar sua principal fonte de renda, divulgando seus quadros e sua arte.
No currículo, Aline soma participações de feiras culturais em Fortaleza como na Bienal do Livro, Feira Negra, Feirinha do Poço da Draga, no Complexo Cultural Estação das Artes e no Dragão do Mar.
Em suas obras, a aquarelista se inspira em situações cotidianas. Um tema frequente em suas pinturas são as representações de mulheres negras, embora muitas pessoas interpretem seus trabalhos como autorretratos, inicialmente não é essa sua intenção.
Aline explica que suas pinturas refletem "o que brota de dentro dela", capturando observações do cotidiano, das pessoas, da natureza e transformando essas experiências em arte. Ela afirma que são tais sensações e emoções que busca compartilhar com o mundo.
Pelo pouco tempo, Aline ainda considera prematuro o seu contato com aquarela, ainda assim, reconhece os avanços e conquistas que já alcançou. Para o futuro, ela planeja aprimorar sua técnica e explorar outras formas de arte para se tornar uma artista completa. A cearense deseja ser reconhecida pelo seu traço e trabalho nas galerias de arte locais, nacionais e internacionais.
“Atualmente eu trabalho muito com feiras culturais, de artes e de rua, mas o que eu quero mesmo é estar dentro dos espaços artísticos onde a maioria das pessoas é branca, tanto quem está facilitando esses espaços como quem está fazendo parte deles em escolas de arte ou com galerias”.
Além de suas pinturas, que resgatam a autoestima de mulheres negras, Aline reproduz artes com base em memórias e lembranças de seus clientes. Ela também cria quadros a partir de fotografias pessoais e momentos especiais. Para adquirir qualquer produto, fazer pedidos e engajar o trabalho da aquarelista entre em sua rede social @arte.serendipity.
"Na Cena" do Quintino Cunha encontramos Má Dame, uma travesti rapper cearense. A artista começou a se envolver com a cultura do hip-hop em 2017. Na época, ela já tinha experiências com composições, poemas autorais, além de já ter participado de saraus culturais e, desde então, se dedica ativamente à escrita, composição, canto e à produção no cenário musical.
Má Dame não considera a música como a única arte central em sua vida, pois também se dedica a outras linguagens e formatos de produção artística. Os movimentos de sarau ocupam um lugar significativo em suas discussões, redes sociais e interesses, a cearense afirma que são eles que dão a oportunidade de trabalho para sua poesia e colagens.
A rapper reconhece a evolução do seu trabalho ao longo do tempo e diz se sentir "abraçada" pelo movimento do hip-hop. Ela revela que se sentiu atraída pelo rap pela possibilidade de falar abertamente sobre sua realidade.
“Para além de ser o ritmo que eu sempre ouvi com mais frequência, poder falar da minha vivência, da minha cidade, de quem sou, do que quero, como gosto”, reforça a poeta.
A cantora lançou o seu primeiro EP em 2020. O álbum, intitulado “No Fio da Navalha”, é composto por cinco faixas, com versos que transmitem a experiência das ruas por onde passa, refletindo não somete seus sentimentos, mas também o que observa ao seu redor.
Essa conexão com a rua, revela a artista, a atraiu para criação dos seus poemas e músicas que apresentam, com letras precisas, uma Fortaleza caótica e a realidade das favelas brasileiras.
O single “Na Cena”, lançado em 2024, é a sua produção mais recente. A composição busca animar os bailes e envolver dançarinos e ouvintes nas plataformas digitais com muita energia e passinho. A faixa inclui uma coreografia especial sendo apresentada pela Má Dame com elementos visuais de Hip Hop e do Reggae.
Nos palcos da Capital, Má Dame acumula apresentações em festivais culturais. Em junho, foi uma das atrações de encerramento do Festival de Cinema e Cultura da Diversidade Sexual e de Gênero (For Rainbow) na Arena do Dragão do Mar. Além de participar do movimento de sarau na Associação Barramar, na Barra do Ceará.
Nas férias de julho, no dia 13, se apresentou em evento solidário no Anfiteatro Sérgio Motta, no Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura.
A artista está presente nas plataformas digitais, no YouTube, e no Instagram. Para se envolver também no passinho, nos movimentos de saraus e no trabalho da artista, acesse suas redes sociais @somadamemermo.