Uma hora de conversa com Raimundo Fagner e o interlocutor sai zonzo. São muitas histórias que envolvem pessoas fundamentais para a cultura nacional. São elogios (alguns), críticas (várias!), um bom humor ácido e uma questão que se repete: Por que “Mucuripe” não entrou para o Festival Nordestino? O compositor cearense insiste na questão e ele mesmo responde: “Ednardo. Ele ficou encarregado de mandar as músicas, aí não mandou. Agora, ele me salvou porque, senão, eu não teria ganho em Brasília. Lá tinha que ser música inédita”.
A eterna implicância entre dois dos mais importantes representantes da música cearense vai e volta durante a entrevista que tem outro mote. Nesta sexta-feira, 2, e sábado, 3, Fagner volta ao Theatro José de Alencar com show que relembra sua passagem no IV Festival da Música Popular Cearense, em que venceu, no mesmo palco, com a canção “Nada Sou”, em 1968. Anunciado inicialmente para uma data, os ingressos voaram rápido. Nova data foi anunciada e os ingressos esgotaram rapidamente mais uma vez.
Perguntado sobre o que lembra da época em que “Nada Sou” nasceu, Fagner começa a desfiar memórias de quando morava no bairro da Piedade e ouviu Beatles pela primeira vez. A música era “I wanna hold your hand”. “Ouvi ao meio-dia, no sol que não tinha uma pessoa na rua. Eu paralisei”, detalha. Nomes de rua, o primeiro porre, a primeira sensação de sucesso (num show em Baturité), bandas como Os Quem, Magnatas e Faraós, além de Luizinho Magalhães, Fernandão e o seu Francisco, luthier que construía as guitarras da turma.
Fagner afirma que não tem saudades da época, mas de algumas pessoas que passaram por sua vida. Uma delas é Marcos Francisco de Alcântara, seu parceiro em “Nada Sou”. Marcos é o responsável por provocar a parceria, inscrever a música e, consequentemente, vencer o IV Festival da Música Popular Cearense. “Ele era um gênio”, resume Fagner, acrescentando que foram morar no Rio de Janeiro na mesma época, um em busca da música e outro das artes visuais. “Ele estava preparando uma exposição para fazer na Galeria Bonino, chegou um alemão e comprou todos os quadros dele. Quatorze quadros”, diz sobre o parceiro que meio que ignorava a música, mas era exímio em obras com bico de pena.
Quando morou com Elis Regina, Fagner presenteou a cantora com dois quadros: um Chico da Silva e de um Marcos Francisco. “O quadro bem sutilzinho, de bico de pena. Ela botou na sala daquela casa onde ela jogou os discos do Ronaldo (Bôscoli, então marido de Elis)”, conta ele que tinha certeza do futuro sucesso do parceiro. Depois do Rio, Marcos foi para Nova York, até que Fagner o reencontrou caminhando por Fortaleza. “Eu estudava com ele lá em casa. Era eu, ele e o Tinoco. A gente era encangado”, relembra ele que viu o amigo pela última vez numa noitada no Estoril. No dia seguinte, Marcos cometeu suicídio.
Eles fizeram pouca coisa juntos, talvez só três músicas – “Nada sou”, “Luzia do Algodão” e “Comunhão”, que Fagner lembra. Com a mesma boa memória, ele conta como foi subir ao palco do TJA, aos 19 anos, para apresentar sua música. Como concorrentes, ele cita nomes como Beatriz Fiúza, Lucinha Menezes, Sergio Pinheiro, Jorge Mello... “Botei uma turma com guitarra elétrica lá, contra todos. Porque a cena da época era muito careta. Era todo mundo muito bonitinho, de violãozinho, bossa nova. Nós entramos de sola. Era a nossa juventude, o pessoal do bairro”, conta ele que, na época, ainda estava com a atenção muito dividida entre a música e o futebol. “As atividades da Piedade eram o futebol e a música. Eu não me achava em condição de jogar com aqueles caras, pela idade ou pelo fascínio da música. Mas terminei envolvido com o futebol também: jogo para caralho e sou humilde. São duas habilidades, e tem a de mentir também", brinca.
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Fagner 1968: Nada sou
Nada Sou
Eu não sou eu
Sou enxada no barro do chão, sou sertão
Eu não sou fé
Sou pecado no corpo fechado de Lampião
Sou espada
Sou granada
Sou toada
Na voz do cansado cantador
No grito do chato agitador
E pensando na morte que eu peço
Eu quero de volta o meu ingresso
E o chefe envolvido num processo
No apito da fábrica apitando
Na canção que os meninos vão cantando
Sem saber que cantando vão chorando
Estefânia parou de cantar
Ouço o eco do chôro no mar
No ronco dos carros na sesta
Cabeças de vento em festa
Alguém me pedindo perdão
Por falar e mandar sem razão
Não aceito motivo. Dou não
Eu não sou eu
Sou panfleto voando e rolando do avião
Eu não sou fé
Sou pecado de amor, resultando indecisão
Sou espada
Sou granada
Sou toada
Eu não sou eu
Sou um deus a pedir um holocausto de outro deus
Deus a deus