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Crítica: Vera Holtz provoca o público sobre infelicidade em "Ficções"
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Crítica: Vera Holtz provoca o público sobre infelicidade em "Ficções"

Espetáculo "Sapiens" provoca público sobre infelicidade e insignificância dos bichos se consideram os melhores do mundo: os humanos
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Vera Holtz em cena com Federico Puppi
 (Foto: Flavia Canavarro/divulgação)
Foto: Flavia Canavarro/divulgação Vera Holtz em cena com Federico Puppi

Valeu a pena se tornar sapiens? Essa é a reflexão que ecoa na cabeça de quem assiste ao espetáculo “Ficções”, com Vera Holtz e Federico Puppi. Em cartaz até este sábado, no Cineteatro São Luiz, a peça traz um retorno histórico da evolução do homo sapien para evidenciar que estamos cada vez mais infelizes.

Vera Holtz se desdobra em quase 10 personagens, entre eles, um professor asno, um fóssil, um primata, o trigo, a plateia do espetáculo, Deus e ela mesma. Cada um deles mostra, sob uma perspectiva diferente, que os avanços da humanidade não trouxeram a felicidade que esperávamos.

O show começa com uma ficção: enquanto aguarda o público chegar ao teatro, Vera está sentada de costas com uma placa que diz “Vende-se ouro”. Muitos se empolgam ao ver a renomada atriz e levantam os celulares para fotografar a estrela. Ao sinal que dá início à peça, um produtor remove a atriz, mostrando que se tratava de uma boneca que a copiava. Esse foi o primeiro sinal de que somos uma fraude.

Logo após, Vera se torna um asno professor que explica, por meio de projeções em uma rocha, um pouco da evolução que resultou nos Homo sapiens. Neste momento, ela recebe uma ligação de seu suposto marido Harari, com quem dialoga várias vezes durante a montagem para externar reflexões. A primeira delas já instiga: por que nos achamos especiais em relação aos outros animais que viveram ao longo de 6 milhões de anos?

Mas se engana quem pensa que o espetáculo será um monólogo, pois a música de Federico Puppi é também protagonista das narrativas. O som dos instrumentos é onipresente e é o que faz o espetáculo arrepiar a cada novo momento.

Vera, em seguida, se torna um fóssil irritado com a arrogância dos Homo sapiens, que se recusam a se assumir como bichos e acreditam ser superiores às demais espécies. O fóssil questiona: “Se são os últimos da cadeia alimentar, por que há humanos que buscam ossos de carne na caçamba de lixo para comer?”, fazendo referência ao caso que aconteceu em São Paulo, há 3 anos.

Ao longo da peça, são apresentados conceitos que só existem para os seres humanos: cooperação, fofoca, direitos, liberdade, ficções. “Um pássaro não voa porque tem o direito de voar, ele voa porque ele tem asas”, afirma a atriz. O silêncio nesses momentos predomina: por que criamos tudo isso? Precisamos de tantos conceitos e regras para viver?

Quem fomenta esse debate é o outro personagem de Vera: o trigo, que se desculpa por domesticar a humanidade. Segundo ele, os sapiens eram muito mais felizes quando podiam viver pelo mundo de caça e coleta, sem se preocupar com plantações. Antes, os humanos não se reproduziam tanto, mas, com a agricultura, passaram a ter tempo para criar filhos e tiveram que perder a paciência trabalhando para ter estabilidade. “Hoje em dia, a vida só vale a pena em feriado prolongado”, brinca o trigo.

A peça continua alimentando cada vez mais a ideia de que a nossa vida seria melhor se vivêssemos como nossos antepassados. Em um momento que muito lembra a canção “Tudo Vira Bosta”, de Rita Lee, Vera e Federico cantam dois versos: “A boca termina no cu // O cu termina na boca”. Os artistas então pedem ao público que cante em coro a música, o que resulta em alegria, risadas e mais uma reflexão sobre o quanto somos ridículos.

Cantar juntos sobre boca e cu foi a deixa para pensarmos sobre cooperação. Se um dia houver um tribunal para julgar os erros humanos que levaram à nossa infelicidade, serão apenas 2 ou 3 culpados? Não. Todos serão condenados porque, mesmo não concordando com o sistema, fomos coniventes e cooperamos para tal.

A peça segue e agora Vera é Deus, que nos deseja sorte para enfrentar a realidade que nós mesmos criamos. Para ilustrar, a atriz atende outro telefonema de Harari e anuncia que quer ter filhos. O marido, no entanto, não concorda em colocar mais uma pessoa num mundo que está se autodestruindo.

Entre diálogos fictícios da plateia criados pela própria atriz, a montagem traz mais um ponto de reflexão: os seres humanos podem fugir da própria realidade, assim como Vera criou uma conversa que não existiu. “Se tudo é ficção, a gente pode pular de ficção em ficção”, diz a artista.

O público inteiro vivia a ficção do teatro, mas poderia sair dela e viver outra ficção fora do espaço. Tudo é ficção porque quase tudo foi criado pelos humanos. Só as pessoas podem ser livres porque a liberdade é um conceito criado pela humanidade. Outros seres apenas vivem a consequência do que criamos.

E, então, chega ao final da peça. Vera discute com o filho, que pergunta por que comemos uma galinha e não podemos comer o cachorro de estimação. Essa é uma ficção criada por nós. Em meio a tantas perguntas sem respostas e querendo fugir de ficções, a atriz decide que viverá como nômade e deixa tudo para trás.

Para encerrar, o público fica de pé. Sentam-se somente as pessoas que corresponderem a alguma percepção otimista, como “Você acredita que o mundo está melhorando?”. Muitos restam em pé até o final. Todos se olham. Muita infelicidade. Mas muita cooperação…

O espetáculo é um golpe de realidade para os que acreditavam estar no topo da evolução do mundo.

Ficções

  • Quando: neste sábado, 5, às 19 horas
  • Onde: Cineteatro São Luiz (rua Major Facundo, 500 - Centro)
  • Quanto: a partir de R$ 21, vendas em sympla.com.br

 

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