Quantos filmes de romance protagonizados por pessoas idosas você conhece? A resposta para essa pergunta deve ter demorado para surgir, já que esse tipo de produção não está tão presente no cinema quanto esteve no início da década de 2010.
O envelhecimento ainda é uma etapa vista como o fim da vida. Constantemente associado a apatia, cansaço e sofrimento, essa fase raramente é relacionada ao amor romântico. Não à toa a atriz Anne Hathaway, de 41 anos, revelou em entrevista coletiva realizada durante a divulgação de “Uma Ideia de Você” que não recebia convites para participar de comédias românticas após completar 30 anos.
No mundo real, porém, histórias de amor seguem acontecendo durante a terceira idade, como exemplifica o casal formado pela cearense Telma Rocha e o paulistano Ariovaldo Stanisci, ambos de 78 anos. Os dois se conheceram ainda na infância, quando ambos moravam no Centro de São Paulo. Natural de Uruoca, a aposentada vive em São Paulo, entre idas e vindas, desde os 6 anos.
O casal viveu um romance de permanentes recomeços, sem conseguir engatar em um namoro de fato. “Essa é a quarta que reatamos, estamos namorando e chegamos à conclusão de que nascemos um para o outro. Somos dois seres em um só”, conta a cearense. "A gente sempre se pergunta porque não deu certo antes. Mas acho que agora foi o momento certo. A gente se ama muito e achamos que sempre foi assim”, continua Telma.
Para Ariovaldo, a falta de experiência foi o principal obstáculo no meio do romance dos dois, que estão juntos há seis meses. ”Após essas idas e vindas ao longo do tempo, encontra-se um denominador, a maturidade e a experiência, que tornam as coisas muito mais fáceis, para que a coisa flua. Tudo isso faz parte de uma experiência, de um amor, um respeito”, pontua o paulistano, que em breve irá morar junto de sua amada, em São Paulo.
Não há diferença em relacionamentos de casais na terceira idade ou mais jovens, segundo Ariovaldo. “Você não pode fazer uma comparação entre o experiente e o jovem, o amor que é compartilhado é o mesmo. Na verdade, as prioridades num relacionamento entre duas pessoas devem ser o respeito, o amor, o carinho, a ternura”.
“Amor, insisto muito nessa palavra, amor, que está um tanto meio difícil, que hoje. Parece que a humanidade perdeu a identificação. Mas, quando existe interesse, objetivos, a coisa se acusa, se transforma, com toda certeza”, salienta o paulistano.
“Sou feliz e com certeza encontrei meu grande amor e vivo o hoje sabendo que terei um amanhã e o resto é resto”, destaca Telma. Maturidade e honestidade são elementos fundamentais dentro de seu namoro, para que seja algo saudável para os dois. “Sempre com o objetivo de ficar um com outro para sempre. Desafios fazem parte, não pesam tanto quando se existe companheirismo”.
No Ceará, o casal formado pela fotógrafa Alice Oliveira, 68, e a professora Marcyanna Gomes da Silva Oliveira, 50, confirma que a experiência é algo presente em relações entre pessoas maduras. “Hoje, sinto que é muito melhor do que no início, porque temos essa segurança, essa vontade de estarmos juntas. A maturidade nos trouxe isso: a segurança de sermos quem somos — duas mulheres lésbicas em um relacionamento visível para a sociedade. Nós não nos escondemos”, explica Alice, de 68 anos.
“Acho que isso também é uma questão de amadurecimento — essa segurança de me enxergar dentro da relação cada vez mais, sabe? A questão da individualidade”, salienta a professora. “Hoje, sei claramente o que eu quero e o que não quero, para onde vou, quais são os meus limites. Isso traz uma paz maior. A maturidade oferece essa percepção mais profunda de si mesma. Hoje, tenho uma visão muito mais clara do que somos”, conclui.
O número de pessoas com idade igual ou superior aos 65 anos cresceu em 42% no Estado, totalizando 912.559 de idosos, conforme censo realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2022.
“De um modo geral, a sociedade criou um imaginário em torno da terceira idade e acaba presa a ele, mas nós não somos assim. Para mim, a vida é realmente eterna. Estou com 68 anos agora, e, claro, sinto algumas limitações; não é como se eu tivesse 30. Mas nem por isso me vejo como alguém sem tempo de vida à frente. Quero viver até os 140! Acho que o primeiro passo para ter uma vida plena é ter essa mentalidade clara: não ficar preso a nada. Estou vivendo minha vida integralmente, de forma leve, solta”, salienta a fotógrafa, que está com a companheira há 24 anos.
Amar é escolher
Sob o pôr do sol da Ponte dos Ingleses, point de Fortaleza que reúne casais diversos, a professora Marcyanna Gomes e a fotógrafa Alice Oliveira posam para as fotos que são capa desta reportagem. No canto, Ana Márcia, irmã de Marcyanna e cunhada de Alice, começa a contar, deslumbrada, um pouco da história das duas, juntas há 24 anos.
“Lindas, as duas não é? Estão todos esses anos juntas e defendendo a causa LGBTQ”, afirma Ana Márcia. A história das duas iniciou durante a ida de Marcyanna até uma festa de aniversário na casa de amigos no Iguape. “Nós tínhamos uma amiga em comum que estava na casa dela e havia me pedido ir buscá-la justamente na casa da Alice”, relembra a companheira da fotógrafa paulistana.
“Foi onde nos vimos pela primeira vez. Foi algo bem rápido. Ela convidou todo mundo para entrar, conversamos um pouco e ela me chamou atenção. Mas não houve nenhuma aproximação nesse dia”, descreve a professora cearense. “No dia seguinte, fomos à praia. Lembro que era uma praia próxima ao Iguape, acho que era a Praia do Iguape. Passamos a tarde toda conversando, e desde aquele dia a gente nunca mais parou de se falar”, conta Marcyanna.
A docente de 50 anos ainda rememora que a companheira vinha a Fortaleza todos os dias para vê-la. “Sempre com a desculpa de levar o cachorrinho dela no pet shop, mas eu nunca vi esse cachorro tomar tanto banho. (risos) Não tinha pet shop no Iguape, então ela vinha para cá para fazer tudo isso”.
O relacionamento só se tornou oficial após três meses. Até então, Marcyanna não havia se relacionado com mulheres. Atenção, carinho e cuidado foram os principais aspectos que fizeram ela explorar sua sexualidade com Alice, de 68 anos, que já se entendia como uma mulher lésbica e possui atuação no movimento LGBTQIAP+ há 48 anos.
“Sempre com uma preocupação genuína, ela sempre muito atenta a como eu estava. Esses cuidados, que eram muito diferentes dos meus relacionamentos anteriores com homens, onde eu sentia que tinha que buscar a pessoa, dar atenção, ir atrás”, ilustra a docente.
“Quando comecei a me relacionar com uma mulher, foi diferente. A atenção era mútua, havia mais cumplicidade. Talvez seja essa a palavra que melhor descreva o que me fez despertar: cumplicidade. Isso é algo que vejo muito entre mulheres”, completa Marcyanna.
As duas sofreram muito com o preconceito da mãe de Marcyanna, que, segundo conta a irmã mais velha dela, Ana Márcia, era muito conservadora. No entanto, houve uma reconciliação do casal com a matriarca nos últimos anos de vida, enquanto ela lutava com o Parkinson. A mãe de Marcyanna e Ana faleceu em 2023.
“Minha mãe foi uma mulher negra que sofreu muito com o racismo da família de meu pai, neto de portugueses. Então, no fim da vida contou com as pessoas que ela mais desprezava para cuidar dela. Como a Marcynha passava o dia trabalhando, era Alice quem ficava com ela durante o dia”, relembra Ana, que mora na Alemanha há 34 anos.
As duas oficializaram a união ainda durante o governo Bolsonaro, no ano 2022. Para elas, o segredo de uma relação longínqua é a decisão de escolher diariamente uma a outra. Acho que é uma escolha diária. “Viver juntos é uma escolha todos os dias. Não tem fórmula mágica, mas tem muito companheirismo, felicidade e a vontade de estar junto. Todos os dias a gente decide que sim, amanhã também será assim”, destaca Marcyanna.
“Então, já são 24 anos e a gente trabalha muito com a verdade. Sempre jogamos aberto, não inventamos neuras, é aquilo que é. O respeito e a confiança que temos uma na outra também são fundamentais. Alice tem a vida dela, o trabalho dela, eu também tenho o meu. Às vezes ela viaja, eu viajo, mas a confiança é sempre a mesma.”, conclui Marcyanna.
Coragem para amar
"Envelhecer é um privilégio", disse Maria Bethânia em entrevista para a Folha de S. Paulo em 2009. A frase virou uma máxima para o dramaturgo Pedro Medina, autor da peça "Ninguém Dirá que é Tarde Demais", protagonizada por Arlete Salles, avó de Medina.
A obra acompanha a história de Luiza (Arlete Salles) e Felipe (Edwin Luisi), dois idosos que são vizinhos de parede em um prédio e reclamam um do outro. Mas, por uma obra do acaso, os dois se encontram na rua com os rostos escondidos sob máscaras em razão do isolamento social. E mesmo com as faces escondidas, sentimentos entre os dois são despertados.
A ideia para a montagem surgiu dos produtores do projeto Rose Dalney, Marcio Sam e Tulio Rivadávia. "Eu tinha o desejo de fazer uma peça de teatro com a minha avó. Sempre foi um sonho. E levei esse sonho, essa ideia, pra Rose, minha amiga de anos. Ela me apresentou o projeto deles e nós fechamos essa parceria", detalha Pedro Medina.
Mostrar as possibilidades de relacionamentos românticos na terceira idade sempre foi uma das intenções do espetáculo. "Rose, Marcio e Tulio queriam falar de amor na terceira idade, eles se inspiraram, aliás, na música do Los Hermanos, "O Último Romance", que contém a frase "Ninguém dirá que é tarde demais", o título da peça", ilustra Pedro.
"Pouco se fala sobre as possibilidades amorosas nesse momento da vida, é importante que se jogue luz sobre esse tema", destaca o também ator. Para a construção dos protagonistas e da narrativa, o artista se inspirou em duas obras: "Era uma vez em Tóquio" (2005), de Yasujiro Ozu e "Medianeras" (2011), de Gustavo Taretto.
"Pincei ideias dos dois filmes e juntei com reflexões pessoais e uma leitura dos acontecimentos daquele momento mais grave da pandemia de Covid-19. E assim apareceram Luiza e Felipe, os dois protagonistas septuagenários enclausurados em suas respectivas residências em pleno confinamento pandêmico", relembra o também diretor de teatro.
Arlete Salles salienta que falar sobre amor entre pessoas com mais de 60 anos é fundamental em obras artísticas. "Sabemos que existe a intolerância, a estranheza quando se sabe de pessoas com idade mais avançada se apaixonando ou com desejos sexuais. Então, as pessoas às vezes até se horrorizam, é um preconceito. Então, vamos tentar treinar um pouco essas estranhezas".
O também roteirista Pedro Medina enfatiza que a peça é uma forma de reafirmação da longevidade de uma vida com qualidade. "Quero envelhecer, significa que continuarei vivo por muito tempo, gozando dessa existência, do mistério que é a vida. A realidade em que vivemos é opressora, limita nossas possibilidades, nos explora".
"Portanto, realizar um espetáculo que fala que nunca é tarde para coisa alguma é uma reafirmação da vida, um valor que o bom teatro sempre carrega consigo", salienta o neto de Arlete. A atriz chama atenção para a razão da ausência de pessoas mais velhas em obras do cinema e da televisão como consequência desse preconceito e da falta de associação entre amor romântico e terceira idade.
"Talvez para os autores fique mais difícil trabalhar num projeto em que os atores não sejam jovens e que seus personagens estejam nessa busca (do amor), nessas inquietações (da juventude). A coisa estética, também, não podemos negar. Não se pode negar, mas eu como já disse acima, não tenho ainda não lido com esse problema", destaca a artista que esteve recentemente na novela "Família é Tudo", interpretando Frida Mancini.
Amor entre idosos na Cultura Pop
Livro A troca (Beth O’Leary - 2020)
Escrita por Beth O’Leary, a trama acompanha a jovem Leena Cotton, de 29 anos, e sua avó Eileen Cotton, de 79. A primeira busca descanso e uma mudança radical, já a segunda quer viver um grande amor. As duas então decidem trocar de vida. A avó passa a morar no apartamento da neta enquanto Leena vai se acostumar com a vida de interiorana.
Ruth&Alex (2015)
Juntos há décadas, o casal Ruth (Diane Keaton) e Alex (Morgan Freeman) decidem vender o apartamento onde sempre moraram no Brooklyn. Porém, os dois não imaginavam a quantidade de burocracias que surgiriam durante as negociações da venda do imóvel, adquirido ainda nos anos 1970.
Simplesmente complicado (2009)
A paixão entre Jane (Meryl Streep) e Jake (Alec Baldwin)se reascende anos após o divórcio durante um encontro casual. Mas agora, a protagonista percebe que é a amante do ex-marido. Para completar, Adam (Steve Schaffer), um arquiteto contratado para remodelar a cozinha de Jane acaba se apaixonado por ela. Iniciando um triângulo amoroso complicado.
O Quarteto (2012)
O trio de músicos Cissy (Pauline Collins), Reginald (Tom Courteney) e Wilf (Billy Connolly) moram em um local para músicos aposentados e estão organizando um concerto importante. Com a chegada de Jean(Maggie Smith), ex-membro do quarteto e também ex-namorada de Reginald, os rancores ressurgem e a harmonia do trio é prejudicada.
"Ninguém dirá que é tarde demais"
Quando: 13 a 15 de novembro; 13 e 14, às 20 horas; dia 15, às 21 horas
Onde: Theatro Via Sul (Avenida Washington Soares, 4335 - Seis Bocas)
Quanto: a partir de R$ 19,50
Vendas: No site uhuu.com ou na bilheteria física do teatro