Se a propaganda é a alma do negócio, a de "Kraven: O Caçador" não poderia ser menos empolgante. Desde a estreia na quinta-feira, 12, o longa dá a sensação de estar abandonado pela Sony Pictures: foi adiado duas vezes, está com pouquíssima divulgação e sequer teve sessão para a imprensa - Estadão assistiu ao longa em uma sessão comum, com cerca de 10 pessoas na sala, em um final da tarde.
Difícil entender a estratégia. Afinal, o filme é o mais consistente do universo de vilões que a Sony Pictures está tentando concretizar desde 2018, quando colocou o primeiro longa do Venom nas telonas. Está longe da bobeira infantil que é essa trilogia protagonizada por Tom Hardy e, ao contrário de "Madame Teia" e "Morbius", tem certa qualidade na produção.
A história também é boa. "Kraven: O Caçador" é uma trama mergulhada em vingança, opressão e violência ao contar a jornada de um rapaz criado por um pai (Russell Crowe) extremamente cruel. Trata mal os dois filhos, os obriga a caçar animais e os menospreza, como mercadorias - nem liga, por exemplo, quando um deles é atacado por um leão.
É nesse cenário que o rapaz decide fugir, deixando pai e o irmão para trás, e começar uma nova vida como Kraven (Aaron Taylor-Johnson). Não é mais aquele rapaz assustado e oprimido pelo pai: agora, é um homem de habilidades sobre-humanas que protege os animais enquanto busca vingança num mundo violento. Uma mistura inusitada.
Não dá para dizer que "Kraven" é um grande filme - longe disso. Há problemas evidentes de edição, com a história se estendendo mais do que deveria. Também há tropeços evidentes na transição do primeiro para o segundo ato, quando o roteiro rasteja sem rumo e bate aquela vontade de levantar e ir embora.
Além disso, há uma enorme quantidade de vilões: imitando o que há de pior no nada saudoso "Homem-Aranha 3", de 2007, o roteiro de Richard Wenk, Art Marcum e Matt Holloway insiste em colocar três inimigos de uma vez só, desperdiçando bons personagens, como o Estrangeiro (Christopher Abbott).
No entanto, mesmo com esses erros que parecem fazer parte do universo de vilões do Homem-Aranha, há algo de empolgante aqui. Depois da primeira hora, "Kraven: O Caçador" mostra como ter um bom diretor faz diferença.
Após apostar em diretores com pouco estofo e com trabalhos passados apenas medianos, como S.J. Clarkson ("Toast") em "Madame Teia" ou Daniel Espinosa ("Vida") em "Morbius", agora a Sony é certeira com o diretor J.C. Chandor.
Chandor tropeçou em 2019 com "Operação Fronteira", mas dirigiu três grandes filmes antes disso: "Margin Call", "O Ano Mais Violento" e, principalmente, a preciosidade "Até o Fim", com Robert Redford. Ele tem um domínio interessante da narrativa e sabe criar tensão mesmo com poucas palavras. Isso é visto em "Kraven" nas excelentes cenas de ação: um momento em que o herói persegue uma van, por exemplo, é melhor que tudo visto nos três filmes de Venom.
Há um controle maior do que está sendo contado e, mesmo com esses problemas de ritmo e de excesso de vilões, "Kraven: O Caçador" convence. O personagem pode até ser um tanto inusitado, quase brega, como se fosse um Dr. Doolittle com esteroides. Mas há algo interessante por trás do inusitado, principalmente quando não há vergonha nisso e o filme, consciente de algumas de suas limitações, abraça o que é ridículo como parte de si.
Além disso, você compra a relação tumultuada entre os irmãos e torce quando as coisas saem dos trilhos - nada de forçar romances aqui, mesmo com a presença incoerente de Calypso (Ariana DeBose, sem vida em tela) numa quase tentativa de um amor para Kraven.
Tudo indica que esse universo de vilões não deve ir muito pra frente. Por enquanto, a Sony confirmou apenas derivados do Aranhaverso e há boatos de um longa-metragem do Sexteto Sinistro, que reuniria todos esses vilões (ou anti-heróis?) em uma só história. Mas é difícil conceber isso após os fracassos monumentais de "Morbius" e "Madame Teia" - e que Kraven deve repetir, estreando em mil salas a menos que "Venom 3" nos Estados Unidos.
Em um momento em que até a Marvel Studios está recalculando a rota, com apenas um lançamento em cinemas durante todo o ano de 2024, a Sony também precisa repensar o que priorizar - e se vale a pena insistir nesse projeto, com mais erros do que acertos. E que ironia! Bem no provável canto do cisne do universo de vilões, enfim um filme que dá para assistir e se divertir. (Matheus Mans/ Agência Estado)