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Pioneira na ficção especulativa brasileira, Emília Freitas completa 170 anos
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Pioneira na ficção especulativa brasileira, Emília Freitas completa 170 anos

Pesquisadores comentam sobre importância da escritora cearense Emília Freitas - que chega aos 170 anos em 2025
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Foto: carlus campos 1301vidaARTE.jpg

Dentro da serra do Arerê, às margens do Rio Jaguaribe, esconde-se uma sociedade de paladinas que atuam sob o comando de Funesta. Uma figura misteriosa que usa da magia e da ciência para lutar contra as injustiças sociais, curar enfermos e salvar pessoas de tragédias durante a época da colonização portuguesa no Brasil.

A figura mística é descoberta pelo doutor Edmundo que - de volta a sua terra natal - resolve se disfarçar de mulher para descobrir mais sobre a criatura. Essa é a sinopse de "A Rainha do Ignoto", considerado o primeiro livro de ficção especulativa e científica do Brasil, escrito pela cearense Emília Freitas, que completa 170 anos em 2025.

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A data precisa do aniversário da autora nascida em Jaguaruana não é possível dizer, uma vez que Emília, assim como sua criação Funesta, é envolta de enigmas. "Tem muito mistério sobre ela e tanto é misteriosa porque ela mesmo tinha na sua escrita esse viés um pouco misterioso, como o tempo que passou e o esquecimento e essa história que se apaga e perde alguns pedaços traz um quê de mistério sobre Emília", explica a jornalista Heloísa Vasconcelos.

A ausência de registros sobre a autora se deve principalmente ao machismo da época e ao patriarcado enraizado na sociedade através das eras, segundo a pesquisadora Lilian Martins de Abreu. "Emília Freitas nasceu no século XIX e, nessa época, o lugar da mulher se restringia ao ambiente doméstico, quando muito e com muito esforço, alcançava o ambiente escolar na função de professora", diz.

"As mulheres que perfilavam nas tribunas a declamar versos e a bradar por direitos não eram bem vistas. E Emília Freitas era uma dessas mulheres intelectuais, republicana, sufragista, abolicionista, espírita, ou seja, repleta de ideais que iam de encontro ao papel social esperado para uma mulher da sua época", detalha Lilian, que também é jornalista e professora.

 O fenômeno da invisibilização da autoria feminina é algo que impactou outras mulheres que também escreveram durante o século XIX e início do XX, conforme destaca Heloísa. "Existiram muitas mulheres naquele período em que Emília Freitas vivia e o esquecimento recaiu sobre todas elas". Alba Valdez, por exemplo, era como Maria Rodrigues Peixe assinava suas obras. A também jornalista é uma das figuradas relembradas no livro "Ipoméias", escrito por Heloísa, ao lado de Emília.

Charles Ribeiro, doutor em Letras pela Universidade Federal do Ceará (UFC), também destaca que a invisibilização da cearense se deve ao modo como os gêneros especulativos não eram vistos como intelectualmente aceitáveis durante o século XIX. "Gêneros como o fantástico e a ficção científica, aos quais 'A Rainha do Ignoto' se aproxima, não eram considerados 'sérios' pela crítica literária dominante, que privilegiava o realismo e o naturalismo", explica.

"Essa desvalorização fez com que obras inovadoras como a de Emília fossem ignoradas ou tratadas como curiosidades, e não como contribuições significativas à literatura nacional", argumenta o também pós-doutorando em Letras da UFC. Além disso, ele salienta que o fato da cearense produzir uma narrativa fora do eixo Rio-São Paulo contribuiu para o esquecimento dela no meio literário.

"Essa centralização cultural resultou em um apagamento sistemático de autores regionais, que tinham menos acesso a redes de publicação e divulgação", ressalta o também idealizador do projeto Padaria Espiritual em Quadrinhos. "A Rainha do Ignoto" (1899) não foi o primeiro livro de Emília Freitas, antes disso ela escreveu "Canções do Lar" (1891) e "O Renegado", texto nunca localizado.

A pesquisadora Jéssica Jainne reitera que é importante questionar a quem interessa a invisibilização da autoria feminina na literatura. "Então, quem resolve apagar o feminino? Quem é que tem esse poder de apagar o feminino? É importante que a gente fale sobre isso", aponta Jéssica, que é mestra em Ciências da Linguagem pela Universidade Estadual do Rio Grande do Norte (UERN).

Ela afirma que ainda há, nos dias atuais, uma tentativa de "impedir o reconhecimento" de Emília. "Não é à toa que estamos falando mais sobre Emília, mas eu costumo dizer que precisamos conversar muito mais sobre Emília Freitas, sobre literatura cearense e, principalmente, sobre literatura de autoria feminina".

"Sabemos que essa lacuna existe, não é? E, como diz a professora Constância (Lima Duarte), essa lacuna revela um processo que ela chama de 'matar a própria memória'", completa a acadêmica. O resgate de Emília Freitas só aconteceu muito recentemente, em meados de 2018, quando a Editora Wish e outras casas editoriais paulistanas publicaram o livro "A Rainha do Ignoto".

Lilian Martins de Abreu acredita que esse resgate ocorreu por causa da alta de temas como feminismo e do gênero fantástico. "A própria dinâmica de transformação do mercado editorial brasileiro que aproveita das temáticas trends e das facilidades financeiras de editar uma obra de domínio público como é o caso de 'A Rainha do Ignoto'", pontua a pesquisadora.

Quer seja uma tendência ou ano, quase dois séculos depois, o legado de Emília Freitas segue sendo lembrado e lido. Em 2024, as Edições Demócrito Rocha (EDR) publicaram uma biografia sobre a autora cearense como parte da coleção Nova Terra Bárbara, escrita por Alcilene Cavalcante.

A pesquisadora Lilian reitera a importância do resgate da autora: "É fundamental que as novas gerações de leitores e estudiosos conheçam como uma mulher, em pleno século XIX, no Ceará, criou uma obra fantástica de feições regionalistas que falava de uma sociedade secreta de mulheres paladinas que ajudavam e acolhiam outras mulheres e órfãos sofredores de várias regiões brasileiras e defendia abertamente a república, o abolicionismo, o espiritismo e que traz de forma alegórica os temas da justiça social e da igualdade de gênero".

 

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