“‘Quem seria aquela mulher?’, pensava ele. Donde vinha? Para onde ia? [...] Mistério!”* Emília pressionou a pena com mais força ao pontuar a exclamação. Seriam capazes de perceber que ela quase descrevia a si mesma? Não sabia. Mas desejava que sim.
Ela inspirou fundo o ar úmido de Manaus e fechou os olhos. Escrevia à noite, hora mais fresca da cidade tropical, quando o mítico vinha com o vento e Funesta quase se fazia visível. O Rio Negro nada tinha a ver com o Jaguaribe, mas a cearense apreciava ambos com a mesma intensidade... À frente de Emília, estava uma imensidão silenciosa, detentora de mistérios que apenas a fada do Areré saberia descobrir. Um dia, pensou, talvez precisassem de Funesta para desvendar Emília...
Voltou a escrever.
*Trecho de A rainha do ignoto (1899).
Emília Freitas não tem rosto. Não há nem um retrato, nem uma ilustração que possibilite esboçar como aparentava a escritora cearense. No entanto, como também julgava Emília, a aparência de uma mulher não é tudo: “Há outros conhecimentos muito mais necessários [Fala da personagem Virgínia em A rainha do ignoto].”
Nascida em Aracati, no dia 11 de janeiro de 1855, ela era filha de Maria de Jesus Freitas e do tenente-coronel Antônio José de Freitas. Em 1869, o pai de Emília morreu - ela tinha apenas 14 anos e sentiu profundamente a perda. Com a mãe e irmãos, mudou-se para Fortaleza, onde estudou Francês, Inglês, História, Geografia e Aritmética. Mais tarde habilitou-se como professora na Escola Normal.
“Emília é de um contexto em que à mulher eram reservadas as questões do lar. Ela foi uma mulher que trilhou um caminho diferente”, afirma a pesquisadora Ana Cristina Lopes, doutoranda do Programa de Pós-graduação em Letras, da Universidade Federal do Ceará (UFC).
A partir dos 18 anos, a escritora começou a se envolver com questões abolicionistas. Participou da Sociedade das Cearenses Libertadoras, presidida na época por Maria Tomásia Lima, e discursou no dia da instalação da Sociedade:
"As flores de nossos prados querem expulsar de seu colo esse monstro detestável [a escravidão] que, em nossa pátria querida, infamava e enegrecia as risonhas cenas da natureza! [...] Seja o prêmio de nossos esforços vermos em breve os nossos caros patrícios voltarem do campo da ação coroados de louros, agitando triunfantes o pendão da Liberdade!"
A cearense também era republicana, socialista e contra a pena de morte e a tortura. Escreveu para jornais do Nordeste, como O Cearense, O Libertador, O Lyrio e A Brisa; assim como para jornais do Norte, a exemplo do periódico Amazonas Commercial, onde morou e lecionou.
Em 1891, publicou o livro Canções do lar, uma coletânea de poemas classificados por Emília como “fragmentos de minha alma” e “partículas de minha triste vida”. Nele, a poetisa contou sobre a morte do pai, a mudança para Fortaleza e criticou, mesmo que sutilmente, a limitação de vida à qual as mulheres eram submetidas.
Em 1899, Emília Freitas escreveu o primeiro livro de ficção científica do Brasil: A rainha do ignoto, publicado pela Typographia Universal de Fortaleza. Nele, a escritora imaginou uma sociedade secreta de mulheres que usam a inteligência, hipnose e mágicas para ir contra injustiças e defender os mais fracos dos fortes.
Na época, a obra não conquistou espaço na história literária. Meio século depois, em 1953, o escritor cearense Abelardo Montenegro (que já foi redator d'O POVO) chegou a definir o romance como “um dramalhão” sem “veracidade”.
Se Emília estivesse viva, ela provavelmente responderia ao professor com classe e muita ironia: Como é possível cobrar um desempenho literário excepcional de alguém que "tem vivido encerrada entre paredes de uma estreita habitação, longe da sociedade culta e de todo o movimento literário"?
Mesmo assim, A rainha do ignoto voltou à atenção da literatura em 1980, quando o professor Otacílio Colares, da UFC, fez a segunda edição do livro. Até 2021, a obra já conta com sete edições:
Atualmente, o romance também é considerado um importante exemplar do gênero fantástico. De acordo com Cecília Cunha, doutora em Literatura Feminina no século XIX, Emília já trazia estruturas narrativas modernas, como a alternância de planos, entre um mundo “real” e um “mágico”. Além disso, o livro mescla vários idiomas e faz questão de representar a linguagem popular.
“O nome de Emília Freitas para a história da literatura cearense e brasileira deve ser inserido no contexto da contribuição de outras autoras no País. A gente tem que pensar em Emília primeiramente como aluna da Escola Normal e também como convivendo com a Francisca Clotilde, que viria ser a primeira escritora a ocupar o espaço público como professora e com grande volume de produção”, pontua Cecília.
"Mas se considerarem os gênios, [...] verão que a Rainha do Ignoto não é, na realidade, um gênio impossível; é simplesmente um gênio impossibilitado."
No século XIX, o feminismo como conceito estava apenas começando a surgir, mas hoje em dia Emília com certeza declarar-se-ia feminista. E dessa valentia digna de Joana D’Arc, figura a quem a cearense parecia respeitar, Emília seguiu “desassombrada no dificultoso caminho da literatura pátria”.
Lá estava ele. Bem no topo da estante de madeira enegrecida, acumulando poeira e lutando contra as traças. A lombada resistira mais de um século aguardando pelo momento em que a historiadora limparia delicadamente o couro um pouco mofado do livro e leria as letras gastas do título: “O primeiro exemplar encontrado de O renegado!”, ele a veria exclamar. No devaneio, uma traça abocanhou uma das páginas da obra perdida de Emília Freitas. Com o choque, O renegado voltou a si. Outra poeira caiu no topo do livro e lá ele continuou… Esperando ser desvendado.
Como se Emília não fosse suficientemente enigmática, ela deixou outro mistério nas mãos dos historiadores ao falecer. Ao noticiar a morte da escritora, os periódicos Jornal do Commercio (AM) e Pacotilha (MA) dão conta de três romances produzidos pela cearense: Canções do lar, A rainha do ignoto e O renegado.
No entanto, nenhum exemplar de O renegado foi encontrado até o momento. Ele também não tem data de publicação definida. Há quem diga 1890, outros 1892; alguns são mais zelosos e cravam um sem data e sem número ao citar a obra. Fato é que o romance causa uma espécie de obsessão em quem conhece Emília pela primeira vez.
O professor Marcio Assumpção, do departamento de Ciências da Informação da UFC, explica que os mecanismos de registro dos livros só surgiram nas décadas de 70 e 80. Antes disso, os escritores brasileiros não tinham obrigação de registrar as obras na Biblioteca Nacional, por exemplo.
Além disso, o mercado editorial era bem diferente no século XIX. “Eram edições menores, patrocinadas pelos próprios autores. Então a circulação dos livros era mais restrita”, comenta. Ainda, era comum que os capítulos fossem publicados em colunas periódicas nos jornais e só então colecionados em um livro. Foi o caso dos poemas de Canções do lar, mas até o momento não parece ser de O renegado.
“Não é impossível, mas [livros desaparecidos da época] são casos que devem ter acontecido aos montes”, reflete Marcio. Dessa forma, Emília deixou apenas algumas pistas sobre o livro: um nome e a suposta participação do marido, Arthúnio Vieira, na produção da obra.
“Aí entra outra questão. Emília só conheceu o marido na primeira ida a Manaus, em 1899. Então, e isso é apenas uma suposição, o livro só poderia ter sido escrito bem depois de 1890”, reflete Ana Cristina Lopes, doutoranda em Letras, atualmente estudando A rainha do ignoto. Sendo assim, sobre o que trataria O renegado? O que um nome e uma colaboração diriam sobre o livro?
Ao leitor, uma importante observação: a partir daqui, com a permissão de Emília, entra-se no mundo das suposições. Não há pesquisas sobre o assunto, mas a tentativa de construir um quebra-cabeça incompleto, com recortes da vida da autora cearense.
“Primeiro, temos o título. Renegado é aquele que abre mão de suas opiniões em detrimento a outras. Muitas vezes, é usado no sentido de mudar de crença religiosa mesmo”, analisa Ana Cristina. Emília Freitas era espírita e, com o marido, fundou o jornal quinzenal Luz e Fé - a primeira publicação de caráter espírita do Ceará. No Pará, o casal também fundou o Centro Espírita Paraense.
"Talvez até tenha sido um livro com aspectos da doutrina espírita. Com certeza deve ter uma figura transgressora, no bom sentido, que seria o protagonista."
Ao que Emília dá a entender em sua história de vida, o Espiritismo era significativo o suficiente para, quem sabe, render um romance tão crítico quanto A rainha do ignoto. Aliás, vale lembrar que ela e Arthúnio já tiveram a casa apedrejada em Manaus por seguirem a doutrina, como indica a historiadora Alcilene Cavalcante, na livro Uma escritora na periferia do Império: vida e obra de Emília Freitas.
Era uma quente manhã de 18 de agosto de 1908 em Manaus. O sol brilhava esplêndido e parecia obrigar que o vento não corresse. Mesmo com o calor letárgico, o céu harmonizava um azul claro com o branco das nuvens. Os periquitos estavam em festa e Emília sentia-se confortada, apesar do mal-estar causado pela malária. Ouviu um casal de araras sobrevoar a casa e então teve certeza: não estava longe o fim de sua peregrinação sobre a Terra.*
Saudosa, Emília vestiu o vestido azul que guardava para as ocasiões especiais e sentou-se a observar o Rio Negro. Por descuido do sol, o vento soprou o rosto da cearense. Com ele, veio Funesta a esticar a mão para receber Emília em sua canoa. Emília aceitou e, juntas, as rainhas do ignoto desapareceram no meio do infinito.
*Trecho de A rainha do ignoto (1899).