Era a manhã de uma quinta-feira, 27 de fevereiro, quando o ator Jesuíta Barbosa atendeu a chamada de vídeo para a entrevista sobre "Homem Com H", cinebiografia de Ney Matogrosso que estreia nos cinemas em 1º de maio. Poucos minutos depois, por volta das 12 horas, o cantor biografado iniciaria a passagem de som do show que realizaria pela noite no Marco Zero do Recife, cidade na qual a jornalista estava alocada.
Menos de um mês antes, o trailer da produção cinematográfica repercutiu positivamente na web com elogios à interpretação do pernambucano radicado no Ceará. A divulgação das primeiras cenas também alavancou a reprodução da música que nomeia a obra nas plataformas de streaming, aumentando em 200% no Spotify entre 10 e 16 de fevereiro, segundo o portal Terra. No TikTok, a rede social queridinha das gerações Z e Alpha, o refrão da canção foi transformado em trend viral.
Jesuíta credita estas formas de reinvenção ao "portal de energia" de Ney, criado com um "contorno queer" permeado por pinturas e figurinos extravagantes, "como o bom artesão que sempre foi", pontua.
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"Ele conseguiu deixar uma entrada possível para as gerações. É um senso de força que a gente pode beber. Acho importantíssimo que a gente consiga falar sobre o Ney numa outra linguagem que não a do teatro, do canto, mas a do cinema. Ney sempre foi uma batalha sobre a liberdade, do corpo, principalmente. Esse filme vem para a gente continuar defendendo esse lugar", analisa.
Os cortes já disponíveis para os espectadores mostram o fio da narrativa construída pelo diretor e roteirista Esmir Filho, uma sequência que acompanha a trajetória do artista desde a infância em Bela Vista, no Mato Grosso do Sul. A versão criada para as telonas busca abraçar a dinamicidade de uma existência sem ruptura e percorre as repressões vividas na juventude, os amores do início da vida adulta e a construção de uma das maiores estrelas brasileiras a partir da trajetória com o grupo Secos&Molhados. Atores como Jullio Reis (Cazuza), Bruno Montaleone (Marco de Maria), Hemila Guedes (Beíta, mãe do artista) e Céu (Elvira Pagã) compõem o elenco.
Para desenvolver a personagem, Jesuíta procurou os pontos de conexão com a estrela de 83 anos. Visitou algumas vezes a casa do artista, onde descobriu importância em signos até então desconhecidos - os móveis, as artes, estes aspectos do íntimo que ninguém vê -, e manteve o contato aberto. "Tentei encontrar uma simbiose, uma interseção entre mim e o Ney. Primeiramente para entender o que a gente tinha de diferenças e semelhanças", explica.
Dentre as similaridades, uma se destaca: a curiosidade pelo outro. "Uma generosidade, talvez. Tenho uma vontade de conhecer quem chega e o Ney tem uma escuta muito aguçada", compara. Não há também como deixar de lado as diferenças na construção de um projeto biográfico. Como dois corpos de expressividades distintas coexistem para conquistar o público? O ator precisou esquadrinhar um trabalho de corpo já explorado em trabalhos como "As Travestidas", coletivo de teatro formado em Fortaleza a partir de pesquisa sobre o universo travesti e transformista.
Foi no grupo teatral onde escutou "Mal Necessário", canção interpretada por Ney e faixa escolhida para o repertório da drag queen Shakira do Sertão, personagem vivida por Jesuíta na minissérie "Onde Nascem os Fortes" (2018). "O trabalho dele (Ney Matogrosso) veio acontecendo naturalmente durante o meu processo de entendimento enquanto artista", conecta. O caminho para este novo formato, acrescenta o também intérprete de Jove em "Pantanal" (2022), envolveu rotina extensa de ensaios e uma produção de quase cinco anos.
"Teve ensaio de mesa, de roteiro e de corpo com Cristian Duarte, uma peça fundamental para conseguir entender de onde partia o movimento do Ney. Não para imitá-lo, mas partiu de uma força motora para encontrar de onde saía a minha desenvoltura. A gente teve ensaio de voz falada e cantada com Yantó. Foi importante porque eu tinha um medo de cantar, de tentar fazer o Ney no sentido vocal, mas Yantó foi levando a gente por um caminho possível de abertura vocal".
Assim, pôde achar o próprio timbre numa performance que abrange o período duro da ditadura militar. Neste sentido, a trilha sonora do filme é ponto estrutural para reproduzir a força de Matogrosso. São reproduzidas canções como "Homem com H", "Sangue Latino" e "Rosa de Hiroshima" - a preferida de Jesuíta. Algumas delas fazem parte do repertório do show "Bloco na Rua", o espetáculo mencionado no começo deste texto.
Naquela mesma data, após a apresentação com a excelência de Ney na capital pernambucana, o cantor de "Poema" encerrou os compromissos sem falar com a imprensa. Foi gentil com a aglomeração de fãs que se formou nos bastidores, mas não conseguiu pausar para atender os admiradores. Quando poucos insistentes faziam a última tentativa perto do camarim, conseguiu uma brecha para aparecer. Trocou as lantejoulas douradas por uma blusa esverdeada, fotografou com um por um da fila e, com tom suave e olhar já cansado, sintetizou em poucas palavras as primeiras impressões da cinebiografia que o homenageia: "Gostei muito mesmo".