“Sensação de potência e libertação”: é como define Mara Alexandre sobre a possibilidade de apresentar seu espetáculo “A Rainha”. Em cartaz nos dias 1º, 2 e 3 de maio na Casa Absurda, a montagem é inspirada na carreira da artista que acumula 31 anos como rainha de quadrilha.
A ideia para o espetáculo surgiu em 2020, quando a bailarina escreveu em seu diário sobre a vontade de levar sua história no São João a público. “'A Rainha' é resultado desse desejo profundo de celebrar e compartilhar minha trajetória como mulher surda, dançante e atuante no movimento junino”, afirma Mara.
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A relação de afeto com as festas juninas começou ainda na infância, na casa da brincante. Desde os 4 anos, o São João corre nas veias da dançarina, hoje com 38 anos, como uma herança passada entre gerações. Em 1994, ela deu início à sua longeva carreira de rainha junina em uma quadrilha infantil do bairro Presidente Kennedy.
“Desde então, carrego no corpo as marcas e transformações do São João do Ceará, atravessando décadas de história, de 1990 até os dias atuais”, reitera Mara, que se deparou com o primeiro desafio na carreira aos 12 anos, quando perdeu a audição. “Eu tinha um corpo que ouvia de uma forma e, aos 12 anos, passei a ter um novo corpo, a ouvir de uma nova forma”, conta.
Após 19 anos de trajetória, a artista consolidou de vez sua jornada no São João em 2013, quando decidiu romper padrões, criando novas movimentações e modos de dançar que são referências para outros grupos no Brasil e no Estado. “Crio minhas próprias coreografias”, afirma.
Ser rainha, para Mara, vai além de performar uma coreografia, é um papel a ser tratado com cuidado. A montagem também ganha uma carga maior em razão do peso que a bailarina percebe em sua história de vida. “É muito mais do que contar a minha história pessoal, é celebrar uma ruptura, uma afirmação e um orgulho que demorei a conquistar”.
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“Durante muito tempo, escondi quem eu era, carregando dentro de mim o pior tipo de preconceito: aquele contra mim mesma, por ser surda”.
A dança serviu para a brincante como instrumento de inclusão consigo mesma. “A dança foi o que transformou a minha vida. Foi através dela que aprendi a acolher meu corpo, a reconhecer sua força, a descobrir que posso escutar com a pele, com os ossos, com o coração. A dança me deu voz, coragem e espaço”. Atualmente, Mara trabalha exclusivamente com a linguagem artística - seja com ensino ou coreografando quadrilhas juninas.
“Ser reconhecida como rainha junina enquanto mulher surda foi um marco nesse caminho: mostrou que a surdez também dança, também brilha, também reina. Subir ao palco agora com esse trabalho é uma maneira de inspirar, fortalecer e abrir caminhos para que outras pessoas surdas também se reconheçam com orgulho, amor e potência”, destaca Mara, que trabalhou como vendedora de loja por 2 anos, por exigência de seus pais.
Os ensaios e processos de criação da montagem foram elaborados em parceria com a diretora e dramaturga de “A Rainha”, Rosa Primo. A pesquisadora foi tutora no trabalho de conclusão de curso que Mara apresentou na graduação de Dança, na Universidade Federal do Ceará (UFC).
A mineira Anamaria Fernandes foi outra especialista que somou com a montagem por meio da dramaturgia. A docente da Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) possui um olhar focado para o uso da dança como ferramenta de inclusão social para pessoas com deficiência.
Incorporar o toque da zabumba no palco foi um dos desafios da produção. O instrumento possui uma vibração grave, que é o que a brincante consegue escutar por ser uma pessoa surda oralizada. Sons agudos, como o triângulo, não são percebidos por ela.
Por isso, as trilhas sonoras foram desenvolvidas com base no que Mara sente e escuta. Para trabalhar com a musicalidade, a artista desenvolveu estratégias como encostar nas caixas de som para identificar os ritmos, sentir as vibrações, perceber os tempos fortes e reconhecer os silêncios que ela não costuma escutar atravessando seu corpo.
A atenção em trazer uma produção que seja de fato acessível é outra prioridade da obra. “A Rainha” possui legendas, tradução em libras e o som da voz da protagonista. A intenção é refletir a diversidade da comunidade surda - formada por pessoas surdas oralizadas, sinalizadas, usuárias de implante coclear e próteses auditivas. "O problema não está em nós, e sim na falta de acessibilidade”, pontua.
"A Rainha"