Baseado em fatos reais, "Manas" é focado em Marcielle, "Tielly", (Jamilli Correa), uma adolescente de 13 anos que vive com a mãe (Fátima Macedo), o pai (Rômulo Braga), os dois irmãos (Enzo Maia e Gabriel Rodrigues) e a irmã na Ilha de Marajó, no Pará. Os seis sobrevivem da caça, da pesca e da colheita do açaí no arquipélago.
Com saudade e adoração extrema pela irmã Claudinha, que deixou o arquipélago para morar com o marido, Tielly descobrirá a escuridão por trás da tradição que faz as meninas de Marajó buscarem fuga em balsas.
A estreia de Marianna Brennand como diretora de longa-metragem de ficção é marcada por um olhar sensível que traz muita delicadeza ao abordar um assunto pesado como a exploração e o abuso sexual de meninas. A cineasta traz seu olhar documental para a condução do enredo, entregando uma trama que faz jus à realidade sem espetacularizar a dor.
Essa percepção é presente na forma como a cinematografia vai colocando o espectador dentro da narrativa, usando janelas para produzir molduras naturais. A sensação é uma ambientação lenta, mas necessária para o que há de vir. Como um terreno preparado com muito cuidado e cautela. Primeiro, explicando visualmente a rotina da família da protagonista e dos outros habitantes da ilha.
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Inclusive, mostrando como a existência de uma instituição religiosa na região não foi muito efetiva para combater os abusos que seguem acontecendo. Chega a ser irônico como o discurso da família é sustentado nos cultos, porém, o cenário, na prática, é perturbador - já que o primeiro contato das meninas com o estupro é dentro de suas casas.
Além de trazer uma reflexão sobre o papel da religião, a trama dialoga diretamente com as fake news espalhadas pela ex-ministra dos Direitos Humanos, Damares Alves, sobre a Ilha de Marajó, em 2024.
Outro destaque da fotografia do longa é a maneira como decide mostrar os abusos: sempre usando a perspectiva da vítima e colocando a audiência nesse local de alguém que está tentando compreender a situação ao mesmo tempo em que se dá conta do horror cometido. O sentimento é de tristeza porque não há ninguém que possa salvar Tielly a princípio.
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O roteiro - assinado por Camila Agustini, Antonia Pellegrino, a própria diretora Marianna Brennand, Felipe Sholl e Marcelo Grabowsky - é um complemento fundamental para a história contada.
Seguindo o mesmo ritmo da narrativa visual, o texto tem o cuidado de não ser escrachado e é marcado principalmente pelo uso da expressão "manas", gíria paraense usada para se dirigir a outras figuras do gênero feminino. Um modo indireto de mostrar como aquele sistema poderia ser quebrado: através da união feminina efetiva e prática e não de camisas "Girl Power".
Esse é mais um dos pontos positivos do filme. Em vez de empregar um "salvador branco", traz duas figuras femininas que serão as heroínas: Tielly e a policial Aretha (Dira Paes). A jovem Jamilli Correa brilha em sua estreia como atriz em longas, sustentando a força necessária para sua personagem.
Não há o que comentar sobre Dira, que mostra mais uma vez seu talento e carisma em uma figura que aparece por poucos minutos. Assim como Rômulo Braga, destaque por seus papéis em "Rota 66" e "Rio do Desejo". A cearense Fátima Macedo também se evidencia ao absorver toda a complexidade de Danielle, mãe da personagem principal, que, assim como a filha, não pode fazer muito para romper o ciclo de abusos.
Diferente de "Anjos do Sol" (2006), que aposta da espetacularização de um problema cotidiano e existente no Brasil, transformando-o em um tipo "pornô violento" sem trazer soluções possíveis, "Manas" conquista por sua simplicidade e delicadeza, salientando que não é porque a cultura do estupro é uma questão comum no Brasil, não deve ser combatida.
Manas
Marianna Brennand em Cannes
A cineasta Marianna Brennand vai receber o prêmio "Women In Motion Emerging Talent" - conferido aos novos talentos da produção cinematográfica durante o Festival de Cannes - que acontece até 24 de maio na França. Ela foi indicada pela diretora Amanda Nell Eu, da Malásia, vencedora da honraria em 2024. Segundo as regras da premiação, cada ganhadora escolhe a próxima agraciada. O prêmio existe há dez anos e tem o objetivo de promover talentos femininos. Como incentivo, Marianna terá acesso ao valor de 50 mil euros (R$ 320 mil) para desenvolvimento de seu próximo projeto.
A cobertura do Festival de Cannes, o maior do mundo no segmento, pode ser conferida nas plataformas do Vida&Arte. Além dos textos publicados no caderno, há conteúdo no Portal O POVO (opovo.com.br/vidaearte) e cobertura no Instagram (@vidaearteopovo). O jornalista Arthur Gadelha é o responsável pela cobertura e está em Cannes. É o segundo ano consecutivo de trabalho do O POVO no festival.