Quase dois anos de pesquisa e viagens entre Fortaleza e o Cariri. Consultas a artistas, pesquisadores, instituições de arte particulares e públicas, galerias, mestres das artes, espaços de memória, museus comunitários e museus orgânicos. A reunião de 484 obras de 63 artistas cearenses. Uma das maiores exposições lançadas pelo museu.
É aberta na Pinacoteca do Ceará neste sábado, 17, a exposição “Existências paralelas - acervo em (des)construção”. Com quase 500 trabalhos de artistas cearenses, entre nomes de projeção local e nacional, contemporâneos e históricos, a nova mostra do equipamento cultural visa discutir os modos de constituir um museu público a partir do conceito de vizinhança.
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O intuito é convidar os visitantes a refletirem criticamente sobre a formação e a identidade de uma coleção pública que pode ir além da representação de um Estado, seu povo e seus artistas, evidenciando potencialidades, lacunas e memórias desse acervo.
Na programação de abertura, a Praça do Muriçoca, do bairro Moura Brasil e no entorno da Pinacoteca, recebe o bloco “A Turma do Mamão”, que conduz o cortejo em direção ao museu a partir das 17 horas. A solenidade de abertura, às 17h30min, é acompanhada de uma roda de samba com o grupo + Melanina.
Fazem parte da nova mostra pinturas, desenhos, gravuras, xilogravuras, documentos, esculturas, fotografias, técnicas mistas, tapeçarias, bordados e vídeos. Entre as produções apresentadas estão fotopinturas de Telma Saraiva, bordados e mandalas de Nice Firmeza, esculturas em madeira de Mestre Manoel Graciano, “máscaras” de cerâmica da Mestra Ciça, pinturas de Zé Tarcísio e obras de nomes como Leonilson e Julia Debasse.
As obras de arte são divididas em cinco núcleos: Modos de produção e circulação; Moderno popular; Formas votivas e celebrações; Memórias territoriais e Miscelânea documental. A pesquisa geradora da exposição partiu do acervo e da missão de salvaguardar, pesquisar e difundir parte da coleção de arte do Governo do Estado.
Enquanto estiver em cartaz, a exposição deverá receber novas obras de diferentes artistas, bem como outros trabalhos poderão ser devolvidos aos seus locais de origem. A curadoria da mostra é assinada por Lisette Lagnado, José Eduardo Ferreira Santos e Yuri Firmeza. O processo curatorial foi compartilhado com pesquisadores e lideranças de territórios e comunidades de diferentes regiões do Ceará.
Participaram profissionais como Diêgo di Paula (Acervo Mucuripe), Paula Machado (Minimuseu Firmeza), Débora Soares e Ismael Gutemberg (Nupac - Nucleo de Patrimonio Cultural do Moura Brasil), Dona Toinha (Quilombo Água Preta, em Tururu) e Tércio Araripe (Grupo Uirapuru Orquestra de Barro, de Moita Redonda).
Segundo Lisette Lagnado, o objetivo inicial da curadoria foi tentar compreender a natureza do acervo da Pinacoteca. A partir disso, “interrogar as ausências (representatividade de gênero, além de marcadores sociais e étnicos) e olhar para outras espécies de ‘pinacotecas’ constituídas, formal ou informalmente”.
“Desde o início foi pensado estimular a relação do ‘museu’ com a vida cotidiana, algo que já acontece na programação da Pinacoteca, com as aulas de yoga e as oficinas. Mas era fundamental que as pessoas do entorno pudessem entrar e se reconhecer mais, dentro de um espaço cuja imponência e arquitetura intimidam e carregam características elitistas que, lastimavelmente, afastam possíveis usuários da Pinacoteca apesar da gratuidade oferecida.
De acordo com Yuri Firmeza, foi somente no contato direto com as obras que a exposição foi elaborada, não partindo de um “conceito guarda-chuva, pré-estabelecido”. “Tivemos um tempo generoso para nos debruçarmos no exercício do pensamento com e a partir das obras. As costuras entre as obras, as questões, os problemas que elas mobilizam, as relações que tecemos foram ao longo do tempo e do espraiamento da pesquisa”, compartilha.
Mas, afinal, como as obras selecionadas levam o público a refletir sobre o tema proposto pela exposição? Lisette aponta que a expressão “existências paralelas” traz nova dimensão para a ideia de apagamento denunciada por setores sociais sem representatividade em narrativas oficiais. Assim, o desejo é afirmar que essas vidas — periféricas, femininas, subalternizadas, por exemplo — sempre existiram.
O processo curatorial foi compartilhado com pesquisadores e lideranças de territórios e comunidades de diferentes regiões do Ceará. Para Yuri Firmeza, esse movimento é de grande importância, pois foi necessário para ampliar pesquisa e encontros para além da Capital. Conhecer o “ímpeto memorialista” de uma Dona Toinha, no Quilombo de Água Preta, em Tururu, e “escutar as histórias da fundação da Lira Nordestina pela voz do Mestre Stênio”, por exemplo, foram “inspirações arrebatadoras”.
Um dos núcleos da mostra é intitulado “Memórias Territoriais”, com fragmentos, artefatos históricos, objetos e fotografias de diversos territórios fundamentais para entender as artes do Ceará. Nele, há obras de Mundinha, Chico da Silva, cartazes de Descartes Gadelha e ceramistas de Moita Redonda.
“É um convite para dialogar sobre o que é um acervo, o que é uma pinacoteca, suas entranhas e vidas internas para conhecermos melhor”, explica o também curador José Eduardo Ferreira Santos.
Lisette ressalta homenagem ao escultor Efrain Almeida, falecido em setembro de 2024: “Trata-se de um expoente de rara síntese entre o popular e o contemporâneo, as formas do sagrado e o universo queer. Poder prestar esta homenagem ao Efrain, na Pinacoteca do Ceará, tem um valor mais que simbólico para restituir a importância de formas vernaculares do sertão e de centros religiosos que migram para fora sem que a crítica do Sudeste tenha conseguido ainda romper com suas perspectivas hegemônicas”.
Uma das artistas da exposição é Ivoneide Gois, com bordados que retratam fotos antigas do Poço da Draga. “Resolvi bordar para imortalizar essas obras”, revela. Um dos bordados é do Pavilhão Atlântico de Fortaleza, que antes de se tornar Pavilhão “era a casa das irmãzinhas, local de afeto para comunidade, onde tinha escolinha, coral e missas”. “Remete muito à memória da comunidade”, pontua.
Outro bordado é de famílias que moraram por quase 50 anos na ponte. Há também obra para representar o Sara Poço da Draga, evento mensal que completou uma década em 2025. Como aponta a artista, “é um momento de descontração para as senhoras do Poço da Draga”.
“Fico muito feliz em participar da exposição. Não esperava que isso fosse acontecer quando resolvi bordar. Para mim, é gratificante que muitas pessoas conheçam a história do Poço da Draga a partir dos bordados”, celebra.
Outro trabalho exibido na exposição é “O farol, a parede, o porto”, da artista visual, performer, videomaker e curadora Linga Acácio. A obra é um videoinstalação que discute a resistência por meio de exercícios de permanência em localidades de porto no litoral cearense, como Serviluz, Poço da Draga e Pecém.
“Através dos tempos, a história dessas localidades evidenciam a lógica de exploração e as transformações no entorno de uma região portuária. O perigo de viver se torna constante e é ativado quando me implico (e implico) nas diversas questões que envolve a ação de permanecer”, explica Linga Acácio.
Ela enfatiza a felicidade em participar da mostra e ressalta que “não se constrói autoestima sem entendermos de onde viemos e quais foram os passos que nos trouxeram até aqui”. Assim, defende a importância da exposição em refletir sobre a memória cearense. Além disso, ressalta o valor de uma iniciativa para evitar a invisibilidade de artistas.
“Quem circula volta, quem é retirada não. Agir sobre nosso histórico de retirância e escassez é tirar os artistas de uma situação de invisibilidade e precariedade, é garantir que os trabalhos possam agir em nossos territórios, contribuindo para as questões que me construíram enquanto sujeito. Que a Pinacoteca possa assumir esse papel de levar o pensamento cearense para longe, mas também trazer para perto e se construir em bases firmes”, compreende.
Programação de abertura
"Existências Paralelas - Acervo em (des)construção"