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Entre a sela e o museu, a exposição "Vaqueiros" completa 26 anos
Vida & Arte

Entre a sela e o museu, a exposição "Vaqueiros" completa 26 anos

Reconstituindo a memória cearense e dando rosto à mitologia sertaneja, exposição etnográfica 'Vaqueiros' celebra 26 anos em cartaz
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FORTALEZA, CEARÁ, BRASIL, 08-05-2025: Especial Os vaqueiros no Ceará, movimentação de pessoas nos 26 anos da exposição Vaqueiros, do MCC Múseu da Cultura Cearense. (Foto: Samuel Setubal/ O Povo) (Foto: Samuel Setubal)
Foto: Samuel Setubal FORTALEZA, CEARÁ, BRASIL, 08-05-2025: Especial Os vaqueiros no Ceará, movimentação de pessoas nos 26 anos da exposição Vaqueiros, do MCC Múseu da Cultura Cearense. (Foto: Samuel Setubal/ O Povo)

Como nasce uma exposição? O que é passível de integrar um acervo museológico? Todo museu tem que olhar para o passado? E quando o passado não é reconhecido como algo tangível?

Essas foram algumas das indagações que passaram pela cabeça do grupo de fotógrafos, antropólogos, documentalistas, historiadores e museólogos que, durante seis meses, percorreram localidades como Tauá, Morada Nova, Pereiro, Crato e diversas outras no Interior do Ceará.

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Munidos de câmeras, cadernos de anotações e com uma responsabilidade institucional nas costas, o grupo expedicionário foi responsável por constituir a exposição "Vaqueiros", do Museu da Cultura Cearense (MCC), localizado no Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura (CDMAC).

Inaugurada em 28 de abril de 1999, no piso inferior do equipamento, a exposição reúne mais de 130 peças e, em 2025, ano em que celebra seus 26 anos de existência, comemora também o marco de 1.730.000 visitantes.

Com um acervo que vai desde fotografias dos casarões do município de Icó até utensílios domésticos de couro utilizados pelos sertanejos, para Margarita Hernández, curadora da exposição, o desafio não foi ordenar espacialmente essas peças, mas, sim, qualificá-las tecnicamente.

O acervo da exposição "Vaqueiros"

"Não foi uma exposição montada a partir do acervo. Nós criamos o acervo em cima da pesquisa e da realidade. E essa foi uma grande oportunidade que tivemos, pois a maioria das exposições são definidas sobre algo já preexistente. Tivemos a liberdade de ir atrás de todas as linhas que seriam interessantes de trabalhar sobre esse homem vaqueiro", conta Margarita.

Figurando como a segunda grande mostra do equipamento cultural, sob a consultoria do museólogo Osvaldo Hernández, a ideia era que as exposições fossem renovadas a cada seis meses ou um ano, repetindo esse processo de pesquisa etnográfica realizado para "Vaqueiros". A passagem do tempo, a verba e a identificação do público, contudo, modificaram os planos iniciais do MCC.

"Naquele ano, o Ceará estava vivendo um esplendor cultural e tínhamos esse sonho de poder renovar anualmente a exposição, com outra temática, mas com a mesma profundidade. Além dos recursos, que hoje em dia são diferentes, vemos que é tudo contra o relógio e que seria difícil tirar todo esse tempo de pesquisa novamente", explica Margarita.

Para além da logística, a produtora audiovisual reitera a permanência da exposição a partir de um ponto que, por vezes, permanece apenas no inconsciente daqueles que a visitam: a identificação.

"Essa exposição segue marcando porque as pessoas se identificam com os vaqueiros. Elas têm famílias no interior, e, ao verem a exposição, vêm também aquele ancestral que tinha o sítio e cuidava do gado, aquele tio, aquele pai ou avô. É um personagem de identificação muito forte", defende.

Para Valéria Laena, historiadora que conduziu a pesquisa etnográfica que deu origem à exposição, os números de visitantes, que se mantêm diariamente, e o apreço popular pela permanência da mostra são o que justificam sua continuidade.

"Em 2012, fizemos uma enquete através das redes sociais sobre a retirada da exposição e percebemos o crescente interesse da população por ela. O que justifica, portanto, é o próprio conteúdo dela como expressão dessa economia primeira para o Ceará, através desse personagem que nos fala sobre pertencimento. Além da relevância simbólica, sua popularidade e capacidade de diálogo com diferentes públicos são fatores que também justificam sua permanência", pontua Valéria, que também é assessora do MCC.

A atualização de "Vaqueiros"

A iluminação escura e focal, as paredes pintadas de vermelho vivo, o contraste dos galhos pendurados com o couro, o livro de assinaturas que resiste ao tempo. Para Valéria, elementos como esses, pensados em um contexto de museologia distinto, seguem fazendo sentido graças a um trabalho de atualização constante, realizado pela equipe do museu.

"Tivemos, nos últimos anos, atualizações de mídias, como a aquisição de projetores, recuperação de fotografias e melhorias no som ambiente. Na parte elétrica, contamos com a renovação e modernização da iluminação. A atualização das informações é feita in loco, através das visitas mediadas pelos educadores e por meio de materiais educativos e informativos produzidos sistematicamente, sob demanda", determina.

No que tange ao caráter educativo da exposição, além das visitas escolares da rede pública de ensino, que estimam uma média de 149 grupos por ano, o MCC realiza leituras mediadas por educadores, visando transpassar de forma realista quem eram aqueles que constituíram os saberes primários do Estado.

"Apesar de a expografia não se atinar às questões raciais como foco central, os apagamentos de nossas ascendências indígenas e africanas fizeram parte do projeto colonial e hoje se colocam como uma demanda para o campo das ciências humanas em geral. Assim, esses debates vêm à tona através do educativo do MCC e da leitura mediada feita por educadores, que, apontando para o mapa que inicia a exposição, destacam que nosso território era povoado por diferentes nações indígenas e que a ocupação colonial ocorreu junto a um massacre dessa população", exemplifica.

Se durante décadas a figura do vaqueiro era sintetizada no personagem Fabiano, do livro "Vidas Secas", como o sertanejo explorado que luta contra a seca, a fome e a opressão social, a leitura das novas gerações é outra. Para Bruno Paulino, quixeramobinense graduado em Letras pela Universidade Estadual do Ceará (Uece), a figura do vaqueiro ganhou releituras tanto na escola quanto na produção poética contemporânea.

"Percebo que essa figura do vaqueiro, ao ser abordada hoje, vem com uma tentativa de se distanciar um pouco daquela visão do vaqueiro como o analfabeto, explorado. As escolas tentam trazer à luz o vaqueiro como um símbolo de resistência, como um símbolo daquele que consegue coabitar em parcimônia e, ao mesmo tempo, com um certo enfrentamento com o sertão. Ele se torna parte do sertão, e não uma figura distanciada dele", argumenta.

Para o professor de Língua Portuguesa da rede pública de ensino, a permanência da mostra assume um papel de demarcação da identidade cultural do vaqueiro, junto à valorização de saberes ancestrais para as novas gerações.

"Junto a exposições como essas, as escolas têm um caminho para valorizar a figura do vaqueiro, trazendo em sua produção marcas da oralidade, da sabedoria ancestral, dos jeitos e modos, saberes e práticas. O fundamental é recontar essas narrativas, trazer essas histórias para o público contemporâneo. Resgatando os mestres da cultura, que são portadores de saberes e ofícios, como os aboiadores, os cantadores de viola, os seleiros, os cordelistas e os próprios vaqueiros", manifesta Bruno, que tem pesquisa desenvolvida sobre a Literatura no Sertão Central do Ceará.

Uma nação de gente

Com planos de permanência e uma atualização da expografia a médio prazo, o resultado da pesquisa etnográfica desenvolvida para "Vaqueiros" extrapola os limites físicos designados para o CDMAC.

Com fotografias assinadas por Celso Oliveira, Tiago Santana e Tibico Brasil, as imagens da exposição deram origem a um ensaio que retrata os cavalos em movimento, os mais de 20 rostos que compõem um mosaico na exposição, as vestimentas e os casarões.

Na vertente audiovisual, com codireção de Margarita Hernández e Tibico Brasil, o documentário "Uma nação de gente" foi laureado com os prêmios de Melhor Filme 16 mm do Festival de Gramado (2000), Melhor Documentário no 40º Festival Internacional de Cine de Cartagena, na Colômbia, entre outros 14 troféus.

Abordando quatro vaqueiros — dois jovens e pragmáticos e outros dois veteranos e românticos —, o documentário tinha como premissa desmistificar a visão única do vaqueiro que vinha à mente no imaginário popular. Com cortes de suas atividades, trechos de aboios e olhares filmados em 16 milímetros, os vaqueiros contam com orgulho das tarefas pouco simples do seu cotidiano e questionam o destino da sua profissão.

"Hoje, esse documentário foi também cedido ao Museu do Homem de Paris. Então, na sala em que figuram as representações das profissões ao redor do globo, temos o vaqueiro cearense. Quando, no tempo, a exposição não estiver mais aqui, ficará guardada por meio desses quatro personagens, que nos deram seus instrumentos de trabalho, seus rostos e suas histórias", finaliza Margarita.

 

O resgate evita o esquecimento

Espedito Velozo de Carvalho nasceu em Arneiroz, no Sertão de Inhamuns, Ceará. Representante da quinta geração de seleiros em sua família, foi observando seu pai que o aprendiz pôde, posteriormente, se tornar mestre na arte com o couro.

Se a sua arte começou trazendo muito da sua identificação regional e familiar, Espedito garante que esse sentimento não mudou com o passar do tempo. Desenvolvendo peças que mantêm viva a herança do sertão, o artesão inaugurou um estilo próprio — que se orgulha em destacar.

"Temos aqui, pendurada no ateliê, uma placa que diz: 'Da sela à passarela'. Da sela, que sempre foi usada no gado, pelos vaqueiros, e hoje está nas passarelas. Aqui não focamos apenas na antiguidade. Damos uma misturada para criar algo novo com base em nossas origens, inspirada na roupa do cigano, do vaqueiro, do tropeiro", relata.

Aos 85 anos, com seu trabalho reconhecido em passarelas internacionais e suas sandálias retangulares pisando solos um tanto quanto distantes de seu ateliê em Nova Olinda, sobre a exposição "Vaqueiros", Espedito reflete:

"É muito legal uma exposição como 'Vaqueiros', pois mantém viva uma tradição nossa, a qual não podemos deixar morrer. Hoje já é difícil vermos um vaqueiro como antigamente: encourado, montado no cavalo, de perneira, chapéu e gibão. Ouvimos falar de vaquejada, mas o vaqueiro como ofício mesmo é raro. Ações como essas são importantes para mostrar às novas gerações, que não conheceram nem vivenciaram isso, como funcionavam as coisas. Se não fizermos esse resgate, tudo cai no esquecimento".

 

Vaqueiros

  • Quando: de quarta-feira a sexta-feira, das 9h às 18 horas; e aos sábados, domingos e feriados, das 13h às 18 horas
  • Onde: Museu da Cultura Cearense (Rua Dragão do Mar, 81 - Praia de Iracema)
  • Gratuito
  • Mais informações: @mccdragao

 

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