"Comunidade: grupo de pessoas com características comuns, inseridas numa sociedade maior que não compartilha de suas características básicas; sociedade", esse é um dos diversos significados de comunidade, de acordo com o dicionário Michaelis online. A sensação de pertencimento é algo presente e palpável quando se fala em eventos da comunidade nerd.
Para a professora Raquel Gadelha, encontrar pessoas com os mesmos gostos em relação a produtos da cultura pop é revitalizante. "É reconfortante encontrar pessoas que apreciam livros, quadrinhos, filmes, games e séries similares e poder compartilhar impressões e percepções", explica a docente de 38 anos, que teve seu primeiro contato com a cultura nerd durante a infância por meio de animes como "Cavaleiros do Zodíaco" e seriados como "A família dinossauro".
O criador de conteúdo Maxmiano Sousa, conhecido como Max, pontua que a liberdade proporcionada por esses eventos para que os geeks e nerds se expressem era algo há muito tempo desejado por ele. "Estar em um lugar onde todo mundo é fã de cultura geek, assim como eu era, e ser livre pra expressar isso sem ser julgado por ninguém? Isso era meu sonho", afirma o também administrador da página de cultura geek "6vezes7".
No Ceará, um exemplo de momento no qual a comunidade se reúne é o Sana. O evento, que concilia amantes da cultura geek e otaku no Centro de Eventos do Ceará duas vezes por ano, foi inclusive homenageado na Assembleia Legislativa do Ceará por completar 25 anos, em 2025. Criada pelo grupo de amigos para ser um espaço de conversa sobre animes, a conferência também foi celebrada no documentário "Cultura Geek Transformando Vidas", exibido na sexta-feira, 23, no Cinema do Dragão.
Idealizado pela Fundação Nipônica em parceria com a Assembleia Legislativa do Ceará (Alece), o Sana aborda como a cultura do nicho nerd e otaku conecta pessoas e impacta suas vidas além do entretenimento. Assim, contribuindo para o sentimento de integração proporcionado por convenções destinadas a esses públicos
Além do acolhimento proporcionado por encontros e celebrações desse tipo, Raquel destaca que os eventos auxiliam numa maior disseminação da cultura geek. "E conquistar novos apaixonados por esse universo", afirma a professora. Kbça Romualdo, vendedor de quadrinhos, ressalta que há lugar para todos no nicho geek, por isso o potencial de agregar personalidades distintas unidas por um gosto em comum é tão relevante. "Acho legal, assim, muitos, mesmo diferentes, serão aceitos em algum grupo geek", enfatiza Kbça, que teve contato com histórias em quadrinhos ainda criança, para "não ir para a rua".
Max salienta que essa identificação acontece primeiro a partir dos personagens e universos de ficção, que apresentam histórias que se conectam com a realidade: "Na fragilidade desses protagonistas, a gente se enxerga. Quando eu leio um livro onde um personagem passa por muitas dificuldades, mas consegue se dar bem no final, isso é inspirador".
Empresária e designer, Cynthia Cordeiro conta que a sensação de poder dividir a paixão por séries, filmes, livros e HQs com outras pessoas é algo emocionante. "Promover e participar de quizzes e workshops sobre o seu tema favorito, com pessoas que compartilham a mesma paixão, é de arrepiar", ilustra Cyntha, que faz parte do grupo Conselho de Aetherium - responsável por montar as salas temáticas de Harry Potter e Medieval no Sana.
A professora Amanda Lopes ressalta que se sente alguém interessante quando está nesses espaços. "É uma sensação de que eu sou legal. Ainda mais estando de cosplay. No 'mundo real', muitas pessoas, especialmente mais velhas, te acham estranha, mas eu sou legal quando sou algum personagem no Sana", revela a docente de 26 anos, que confessa que não sabe "quem seria sem a cultura geek" em sua vida.
"Na adolescência, eu escrevia fanfics, tentei ter um canal no YouTube, tive uma página chamada Luminária... Era o que me dava ânimo", conta Amanda, que hoje realiza cosplays em eventos e participa de vídeos para falar de um de seus animes favoritos "One Piece". "Continua sendo o que me dá ânimo", salienta.
O fenômeno de identificação promovida pela cultura geek se deve principalmente a sua capacidade de se ligar com a contemporaneidade, de acordo com Raquel. "A cultura geek ainda que acompanhe os aspectos e mudanças sociais que lhes são contemporâneos, sempre procurou trazer à luz e representar em seus personagens perfis e características das mais diversas", argumenta.
Para o sociólogo fluminense André Severino, fazer parte da comunidade geek funciona como um contraponto à sociedade conservadora. "É um conservadorismo que tende a infantilizar pessoas que não trafegam no mesmo na mesma frequência do que é considerado 'sério'", explica.
Por isso, as convenções se tornaram um espaço onde os admiradores do nicho nerd podem extravasar suas verdadeiras personalidades, tornando o acesso aos eventos fundamental para todas as camadas sociais. "Então, tem formas também de expressão artística que são interessantes para que essas pessoas que geralmente em cidades pequenininhas não têm espaço para se expressarem de maneira mais segura", aponta André.
Cynthia relembra que durante a adolescência costumava ser excluída por ser alguém que consumia cultura geek. "A gente escondia e diminuía a empolgação. Então, extravasava tudo isso em eventos como o Sana, Geek Expo, TAC", relembra. "Hoje, sinto que essa exclusão diminuiu bastante", diz a empresária que possui uma papelaria de produtos personalizados de séries e animes. Para ela, a maior prova dessa maior aceitação da comunidade de geeks têm sido as exibições de episódios finais de séries como "Game of Thrones" em bares da cidade, quer sejam voltados para essas temáticas ou não.
"Ser visto é se sentir incluído"
Entre os anos 2021 e 2022, o Universo Cinematográfico da Marvel inovou ao trazer protagonismos dissidentes para suas produções - lançando séries e filmes com personagens asiáticos, negros, mulheres, latinos e LGBTQIAP . "Os Eternos" (2021), "Mulher-Hulk" (2022) e "Loki" (2021-2023) são alguns exemplos desse tipo de construção.
A decisão da empresa em trazer mais diversidade para às telonas foi motivada pelo mercado, que mostrou que "quem lacra, lucra". Até então, os longa-metragens com elenco principal que destoava do padrão branco heteronormativo eram "Pantera Negra" (2018) e "Capitã Marvel" (2019). Ambos arrecadaram US$ 1,346 bilhão e US$ 1,128 bilhão, respectivamente.
O jornalista especializado em cultura geek, Maxmiano Sousa, destaca que esse olhar para a diversidade é também uma jogada de mercado. "Mas ao mesmo tempo, também não podemos deixar de perceber que tudo isso só é feito por causa do sistema capitalista, que quer o dinheiro dessas pessoas", salienta o também criador de conteúdo de 25 anos.
Além de demonstrar um aumento na popularização de obras deste nicho, os números ilustram uma mudança no que o público quer ver em telas, segundo Cynthia Nogueira, empresária do ramo geek. "À medida que o público se amplia, ele quer se ver representado nas histórias. E essa é justamente a beleza do universo geek: tem espaço pra todo mundo", argumenta.
Se sentir parte de um universo, mesmo que fictício, é fundamental, de acordo com a professora Raquel Gadelha. "Ser visto é se sentir incluído. E é necessário que as obras continuem apostando na diversidade e na boa representatividade, com personagens de fato bem escritos e que gerem identificação com o público", pontua a docente que procura consumir narrativas que prezam pela diversidade.
Romualdo Kbça, vendedor de quadrinhos, afirma que é uma felicidade observar a disseminação da cultura geek nos dias atuais, uma vez que, em sua época de infância e adolescência, durante os anos 1980, o cenário era outro. "Sempre tiravam sarro por eu gostar de HQs, minhas primeiras camisas com temas de quadrinhos foram pintadas por amigos, e muitos diziam que eram roupas de crianças. Hoje, uma camisa da Marvel ou da DC é tão normal quanto uma camisa de futebol", argumenta.
"O universo geek tem espaço para todas as diversidades, e o maior problema, são uns 'inceis' que não aceitam essa mudança", completa o comerciante. O termo que ele usa se refere a uma subcomunidade que ganhou força nos últimos anos na internet. O conceito ganhou popularidade nos últimos meses ao aparecer na série "Adolescência" (2025), da Netflix.
Incel é a junção de das palavras involutário e celibatário, associado atualmente a grupos que propagam misoginia, racismo entre outros discursos de ódio. A expressão foi associada à comunidade geek por causa de "fãs" que culpavam a representatividade nas produções pela queda de qualidade em alguns longas, como "Thor: Amor e Trovão" (2022).
Embora não seja algo relacionado a baixa qualidade dos filmes resultando em queda de bilheteria, a diversidade nas películas do gênero está com os dias contados, conforme analisa Maxmiano. "Os estúdios vão pensar numa outra forma de voltar a ganhar mais dinheiro, deixando as discussões de representatividade de lado e tentando focar mais em heróis brancos", argumenta.
Geek vs Nerd: é tudo a mesma coisa?
Por vezes os termos nerd e geek são usados como sinônimos. No entanto, a literatura especializada apresenta pequenas diferenças entre as duas nomenclaturas.
O primeiro se refere a pessoas com muito interesse em tecnologia, ficção científica, literatura fantástica, jogos de tabuleiro, histórias em quadrinhos, RPG, séries televisivas, videogames, além de gosto por assuntos relacionados a química e física, segundo explica o pesquisador Jason Tocci em sua tese de doutorado, publicada em 2009.
O conceito acima também acompanha um tom negativo - conforme argumenta Paula Rozemberg Travancas em seu artigo "Nem toda Mulher-Maravilha usa bracelete de ouro: um mapeamento dos blogs nerds feministas brasileiros" (2018). A palavra ainda é associada a jovens introvertidos, geralmente homens brancos cis e heterossexuais, com dificuldades de socialização.
Por meio das convenções voltadas para o nicho nerd, o termo foi se tornando um rótulo de identificação para uma comunidade. Ao perceber uma demanda em potencial de lucro, os olhares do mercado voltaram-se para o novo público-alvo.
Surgindo a partir daí passamos a ter o geek, que é o nerd "descolado". Pessoas que possuem os mesmos gostos intensos por universos de fantasia, mas que por terem sido incorporados pelo
capitalismo, são mais aceitos. No Brasil, as duas palavras costumam ser usadas como sinônimas.
Origem da efeméride
As celebrações do Dia do Orgulho Nerd tiveram início no fim dos anos 1990, por meio do Festival do Orgulho Geek ou Dia do Orgulho Geek, organizado por Tim McEachern. Embora não ocorressem exatamente no dia 25 de maio, data a qual a efeméride está fincada, as reuniões, que aconteciam em um bar em Albany, são percebidas como um prólogo da data oficial.
No entanto, a primeira celebração do Orgulho Nerd foi em Madrid, na Espanha, em 2006. Em 25 de maio, cerca de 300 "nerds" se reuniram na cidade chamando atenção da imprensa ao formarem um pacman humano. Um manifesto para celebrar a data foi criado com direitos e responsabilidades da comunidade, em um texto de tom irônico.
A data foi escolhida para celebrar a estreia do primeiro filme da série "Star War IV: Uma nova esperança", em 25 de maio de 1999. Além disso, também há uma homenagem ao escritor Douglas Adams, criador da trilogia'"O Guia do Mochileiro das Galáxias", que faleceu em 11 de maio de 2011.