Após a primeira sessão de “O Agente Secreto” em Cannes, a conversa que circulava pela crítica internacional era de que havia nascido mais um favorito à Palma de Ouro, maior honraria do evento. Isso porque o grande mergulho que Kleber Mendonça Filho faz no Recife dos anos 1970 foi percebido com muitas camadas políticas, estéticas e narrativas. No lugar da especulada Palma, porém, a rara premiação dupla de Melhor Direção e Melhor Ator deu à obra uma posição tão poderosa quanto.
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Mesmo que a grande audiência internacional não tenha compreendido questões muito regionais, elementos que Kleber usa sem o pudor do exagero, a robustez do projeto gerou um grande impacto imediato. A gama de personagens, cenários e conflitos da trama, somada à recepção efusiva da plateia e à entrada de frevo pelo tapete vermelho, deram ao filme o aspecto de um “acontecimento”.
A conversa de bastidor mudou de rumo quando “Um Simples Acidente”, de Jafar Panahi, estreou na presença do próprio cineasta. Quando lançou seu filme anterior, “Sem Ursos”, no Festival de Berlim, ele estava encarcerado por perseguição política do governo do Irã. Sua presença em Cannes, por si só, tornou-se um grande evento a ser celebrado.
No seu longa, um mecânico decide se vingar de um oficial que lhe torturou no passado – sequestra-o à luz do dia, leva-o até o deserto e deixa a cova pronta. Mas na hora de matá-lo, será mesmo que ele terá coragem? Embora pareça drástico, Panahi faz dessa trama uma “comédia de erros” quando o mecânico vai escalando várias pessoas inesperadas para essa missão cabulosa. É uma resposta sarcástica e ácida que ele faz ao governo autoritário do seu país.
Com minoria norte-americana, apenas com os atores Jeremy Strong e Halle Berry, o júri concedeu uma premiação ousada sem qualquer filme falado em inglês, chegando num resultado muito mais atraente do que o do ano passado. Um Prêmio Especial para o cineasta chinês Bi Gan pelo filme “Resurrection” é um gesto fascinante de homenagem aos rumos que a arte do cinema está tomando neste século.
Na trama psicodélica e permeada de grandes delírios através do tempo, o filme conta a história de um “fantasma” que optou por nunca mais dormir em troca de uma vida eterna. Na mão de Gan, essa história acaba se vestindo de um grande tributo ao próprio cinema, única linguagem que seu protagonista etéreo consegue compreender.
O espanhol “Sirât”, de Oliver Laxe, e o alemão “Sound of Falling”, de Mascha Schilinski, dividem o Prêmio do Júri como uma dupla que também celebra invenções políticas de jeitos muito particulares. Enquanto o primeiro conta a história de um pai que mergulha por raves pelo deserto na busca de uma filha perdida, o segundo cria uma narrativa macabra em torno da forma como gerações de mulheres são afetadas pelo desejo da morte. São filmes ariscos que desafiam a plateia, especialmente por não ocultarem certa discussão sobre espaços de poder ao longo da história.
O prêmio de Melhor Atriz também teve estilo com a escolha de Nadia Melliti, por sua interpretação quieta de uma garota muçulmana de “La Petite Dernière” que precisa encarar os dogmas do islamismo quando se descobre lésbica. Embora o filme seja muito simples, o dilema é forte o bastante. Talvez a premiação mais clássica tenha sido Melhor Roteiro para os renomados Jean-Pierre e Luc Dardenne por “Jeune Mères”, exibido sem tanta comoção no último dia da competição.
Também próximo ao desfecho da programação, o norueguês “Sentimental Value”, de Joachim Trier, recebeu a maior aclamação coletiva do festival, aplaudindo o drama de uma família machucada e curada pelo cinema – em tela, Renate e Skasrgard formam uma dupla sublime. Fortemente especulado para a Palma de Ouro, venceu uma espécie de “segundo lugar” com o Grande Prêmio do Júri.
Ponderando as emoções, o júri de Juliette Binoche realmente conseguiu extrair o que tinha de mais pulsante na seleção do 78º Festival de Cinema de Cannes, fazendo desta uma edição nada menos do que histórica. Afinal, todos os filmes vencedores têm potencial para fazer um grande barulho quando finalmente puderem concluir o ciclo para o qual foram feitos: alcançar o público.