Ao chegar ao Museu da Imagem e do Som do Ceará (MIS-CE), Ailton Krenak vê seu nome em uma das portas e logo solicita para tirarem uma foto sua. Sorridente, mal sabe que esse já é o intuito de Fábio Lima, repórter fotográfico do O POVO: a partir de sua câmera, mostrar o rosto por trás do nome.
Essa foi a primeira sintonia protagonizada por Krenak ao longo de uma manhã de entrevistas. Após dois dias intensos de agenda em Fortaleza, conseguiu, enfim, desacelerar. O escritor e líder indígena visitava a Capital para ações relacionadas à mostra "Hiromi Nagakura até a Amazônia com Ailton Krenak".
Ele é curador da exposição, em cartaz no MIS. Realizada em parceria com o Instituto Tomie Ohtake, a iniciativa apresenta registros do fotógrafo japonês Hiromi Nagakura entre 1993 e 1997 por meio de expedições ao Acre, Roraima, Mato Grosso, Maranhão, São Paulo, Pará e Amazonas.
Juntos, Krenak e Nagakura se aproximaram, conviveram e registraram a cultura dos povos Krikati, Gavião, Xavante, Huni Kuin, Yawanawá, Ashaninka e Yanomami. As fotos apresentam os modos de vida, os gestos, os cantos e os corpos dos povos originários da Amazônia brasileira e do cerrado.
No dia 17, Krenak participou de conversa na Praça do MIS. Dois dias depois, concedeu entrevista ao O POVO. Durante a conversa, realizada na biblioteca do equipamento, além da equipe do jornal, mais pessoas se aproximaram para ouvi-lo.
Krenak apontou sua visão sobre o futuro e destacou impressões quanto a COP 30, realizada em Belém, no Pará, neste ano. Para ele, o evento parece mais uma "feira de tecnologia", dominada por corporações, que uma oportunidade de discutir mudanças climáticas.
Ailton Krenak - Eu gostaria muito de ter estado aqui na abertura da exposição, pela importância que estabeleceu contato com as nossas comunidades indígenas daqui do Ceará. Temos 17 etnias aqui. Eu queria circular com essa exposição em todas as regiões onde os povos indígenas estão fazendo sua intensa comunicação com os campos da arte e da literatura.
O fato de eu circular pelo ambiente da literatura me fez perceber a importância dessas narrativas, como essa que está instituída pela mostra “Hiromi Nagakura com Ailton Krenak Até a Amazônia”. Parece um título de cordel. É bonito. Gostei muito desse grande título, mas gosto principalmente de me lembrar que a exposição é uma homenagem a esse fotógrafo japonês, e que ela foi possível devido às viagens que fizemos na década de 1990.
Portanto, essa celebração da nossa amizade de 30 anos foi feita com o desejo de apresentar para o Brasil o trabalho de um fotógrafo internacional, porque no País chegam poucas referências sobre a fotografia no Japão.
Somos muito influenciados pela fotografia europeia e dos Estados Unidos. Nosso contato com acervos geralmente é europeu. Falei: “Caramba, por que não vemos a fotografia japonesa no Brasil?”. Na Ásia, o Nagakura tem a mesma estatura que esses grandes fotógrafos internacionais, como Cartier-Bresson e Sebastião Salgado.
Aliás, acima da sua cabeça leio agora a frase: “Vejo com o coração”. É de um grande fotógrafo, Thomaz Farkas. O Nagakura é um desses camaradas que vê o mundo com o coração.
Ailton - Homenageá-lo com essa exposição é também agradecer a alguém que saiu de sua terra de origem e se dedicou durante anos a vir ao Brasil para viajar comigo para as aldeias representadas na mostra. Do modo como está instalada, ela contempla uma parte extensa da produção fotográfica dele.
Quem dera pudéssemos despertar o interesse das pessoas pelo seu trabalho também como fotógrafo nos campos de refugiados. Ele cobriu conflitos no Afeganistão, acompanhou Nelson Mandela na África do Sul, a luta na Palestina…
Sempre que vejo algum evento relacionado à fotografia comparo a dedicação e o engajamento dos fotógrafos com a realidade dos povos que eles fotografam. Acho que o Nagakura tem um olhar apaixonado pela floresta. Nessa exposição, homenageamos a floresta, a Amazônia e o Nagakura.
Ailton - Ele me revelou um ser humano que vive uma experiência, a partir do seu ofício, de servir ao bem comum. Fotografa crianças abandonadas, miseráveis, em campos de refugiados no mundo. Criou um projeto social onde vive no qual publica livros e a renda deles retorna como apoio para crianças em diferentes países e continentes. Todos os países onde passou ele deixou um sentido de engajamento.
Ele não é um esteticista. Não fica escolhendo a melhor foto. Consegue fazer a melhor foto, mas o que procura é a melhor pessoa.
Fiquei surpreso quando o ouvi dizer que, para ele, entrar na floresta, longe de tudo que é “civilizado”, pôs ele em contato com o xintoísmo — tradição deles e que consideram ser a divindade. Então, um japonês na Floresta Amazônica sentia que estava em um templo, porque eles têm uma cultura gentil com tudo que chamamos de natureza.
O que no Ocidente é algo separado de nós, na tradição japonesa há um sentido de sagrado desde sempre, diferentemente dos europeus, que acham que a floresta é selva e por isso a derrubam.
Ailton - Se alguém tivesse o lugar ou o poder de instituir um tribunal que responsabilizasse as pessoas pela destruição do que a gente chama de natureza, esse trabalho do Nagakura poderia servir como um manifesto ou um documento, uma prova de que estamos acabando com a floresta. Escutamos todos os anos que foram desmatados milhões de hectares.
As imagens que Nagakura fez há 30 anos mostram como estamos desaparecendo com a floresta e com os rios. Elas foram feitas em um período continuado por quatro anos, há três décadas. A cobertura original do cerrado, onde fotografou os xavantes, quase não existe mais. O Xingu virou uma ilha cercada de soja por todos os lados. Parece um deserto. Se olhar uma imagem aérea do Xingu, parece um corte de cabelo, com tudo raspado em volta. Se subir para as grandes regiões do Acre, onde era impensável entrar a soja ou qualquer outra monocultura, você já registra isso atualmente. Vamos para uma conferência do clima na Amazônia, onde a mostra é quase uma acusação de que somos incapazes de um compromisso com a natureza.
Ailton - Eu não me sentia capaz de pegar o acervo do Nagakura, mesmo que limitássemos a seleção ao material produzido no Brasil, durante as viagens que ele realizou comigo. No entanto, analisamos a obra do Nagakura em sua totalidade — que é imensa — e observamos seus trabalhos realizados na África do Sul, na Palestina e na América Central.
Ele chegou a ir a El Salvador durante o período da guerra. Ou seja, Nagakura foi um fotógrafo de guerra por muitos anos. Quando se cansou de estar constantemente em ambientes de conflito e bombardeio — e acredito que ele também enfrentava uma crise pessoal naquele momento —, ele abandonou aquela fase da vida, veio para o Brasil e disse: “Agora, quero ir para a Amazônia.”
Tive a rara oportunidade de ser convidado por ele para guiá-lo nessas viagens. E, quando fui convidado para fazer a curadoria de sua obra, me senti tão incapacitado que perguntei a ele: “Nagakura, dentre todas as suas fotografias, quais você gostaria que o Brasil conhecesse?” Assim, realizei uma cocuradoria.
Ailton - O Nagakura escolheu as imagens que desejava exibir, e, nesse aspecto, ele tem um olhar muito particular. Ele talvez não seja um esteticista, mas é um perfeccionista. Você acredita que ele ampliou todas as imagens primeiro lá no Japão? Digitalizou, tratou e selecionou as imagens desta exposição.
Aí, alguém pode perguntar: “Então, qual foi o papel da sua curadoria?” A curadoria que realizei esteve mais relacionada ao que chamamos de expografia. Fui eu quem concebeu a ideia de abordar os territórios como narrativa — contando uma história sobre a floresta, sobre a cultura, os rituais, a intimidade das famílias.
Algumas fotografias nos fazem pensar: “Como esse fotógrafo teve tanta proximidade com essas famílias a ponto de registrar mães amamentando seus filhos, crianças brincando, pessoas dormindo?”. Isso aconteceu porque o Nagakura viajou comigo e dormiu nas aldeias. É diferente de um fotógrafo que somente visita uma aldeia. Ele realmente vivenciou aquilo.
Como está descrito no texto de abertura da exposição, ele me disse: “Serei sua sombra.” Como quem diz: estarei ao seu lado o tempo todo. Vou almoçar com você, dormir, comer, tomar banho, correr com você. Apesar do desconforto inicial de ter alguém que você ainda não conhece dizendo que vai “colar em você”, a confiança e a amizade que surgiram desse trabalho conjunto são para a vida toda. Esta exposição é, portanto, uma homenagem a um fotógrafo japonês de quem fiquei amigo.
Ailton - Durante a ativação que realizamos aqui com o público, compartilhei a experiência do Nagakura nas aldeias. Contei que, na primeira vez em que lhe foi oferecida uma rede para dormir, ele observou aquele objeto flutuante e perguntou: “Como vocês conseguem dormir aí em cima?”. Afinal, os japoneses estão acostumados ao tatame, utilizado no chão. O tatame é baixo, firme, sólido.
Já a rede, para ele, parecia algo quase líquido. E é justamente isso: a rede possui essa fluidez. Para vocês, que são do Ceará, a rede é quase uma extensão do corpo, uma segunda pele. É uma maravilha — e quase uma exclusividade cultural da América do Sul. Nossos vizinhos sul-americanos chamam aquilo que conhecemos como“” de hamaca, com H. É uma rede de dormir, de balançar, de sonhar. E o Nagakura ficou fascinado com esse objeto — um equipamento de descanso tão leve que pode ser enrolado, pendurado, colocado em uma canoa, transportado com facilidade, e, ao chegar ao destino, pendurado novamente para descansar.
Quer dizer, um objeto de descanso que não é uma cama. A rede é um aparelho tão interessante que pode ser considerada uma espécie de segunda pele que você carrega consigo. E o Nagakura disse: “Ah, então é por isso que vocês sonham tanto!”. Ele achou maravilhosa a sensação de estar suspenso no ar, sonhando. A melhor propaganda da nossa rede, curiosamente, veio de alguém que cresceu dormindo no chão, sobre um tatame. Foi uma experiência muito bonita e marcante.
Ailton - Durante todo esse tempo de convivência, ele continua falando japonês. Ele não aprendeu a falar português, e eu também não aprendi japonês — exceto por uma ou outra palavra, obviamente. Por exemplo, aprendi uma palavra maravilhosa em japonês: kokoro. Kokoro significa "coração". Para mim, isso é muito interessante, porque essa palavra possui um som muito expressivo. O som que o coração faz, esse pulsar, produz algo semelhante a “kokoro”. Na língua Krenak, “coração” é tetum.
Veja só: se você escuta seu próprio coração, ou o coração de outra pessoa, ele emite um som que pode sugerir algo como kokoro ou tetum. Já em português, a palavra “coração” soa quase como uma extração. Parece mais uma descrição anatômica: coração, cabeça, estômago... Já kokoro é uma emissão sonora bela. Tetum também. E nós dois conversávamos sem intérprete.
Ailton - Bem, há 30 anos conversamos sem intérprete. Essa experiência resultou em um livro lançado no Japão em 1998. Esse livro emprestou o título à nossa exposição atual: “Como um rio, como um pássaro”. Foi o Instituto Tomie Ohtake que organizou a itinerância dessa mostra peloPaís.
Meus colegas, co-curadores da exposição, sugeriram esse título e eu achei excelente. Mas ressaltei: “Vocês não podem tirar o título original em japonês — Como um rio, como um pássaro.” Aquele grafismo japonês foi o título do livro publicado no Japão em 1998. E agora temos, digamos, uma versão brasileira dessa obra, com o título “Um rio, um pássaro”.
Essa viagem com Nagakura não para de gerar efeitos poéticos. Ela continua inspirando novas obras. Imagine: 30 anos depois, realizamos uma exposição fotográfica a partir de uma jornada que vivemos juntos. No meio do caminho, surge um livro. Mais adiante, esse livro é traduzido. Depois, ele ganha uma nova interpretação. É o tipo de experiência criativa em constante produção de sentido.
Ailton - A minha observação está muito alinhada com essa ideia de ver o mundo com o coração. É um convite às pessoas que visitaram nossa exposição para olharem essas imagens tão belas com os olhos de uma criança, pois elas também foram feitas com um olhar livre de preconceitos. Uma pessoa do outro lado do mundo conseguiu nos enxergar sem nenhum tipo de julgamento.
E vivemos hoje em uma época marcada por tantos preconceitos, tantos olhares carregados de julgamento… As pessoas observam você pela cor da pele, pela roupa que usa, pelos aspectos externos.
O trabalho do Nagakura reflete um olhar descomplicado, um olhar simples — sobre a floresta, as pessoas, a paisagem. Essa exposição convida o visitante justamente a isso: a enxergar com simplicidade e sensibilidade.
Ailton - Claro que esta não é a primeira vez que venho a Fortaleza — e eu gosto muito de vir aqui. Esse tempo mais largo que vocês experimentam no cotidiano é, para mim, algo muito especial. Eu não queria ter vindo com tanta pressa, mas infelizmente não pude estar na abertura, o que acabou empurrando a minha agenda para uma vinda rápida, somente para essa ativação e dois dias de permanência. Ainda assim, espero ter a oportunidade — quem sabe antes do encerramento da exposição — de estar com vocês novamente em outra ocasião, porque a acolhida tem sido excepcional.
Esse encontro em frente ao Museu da Imagem e do Som, com aquele espaço todo tomado por pessoas até nas beiradas, foi a maior demonstração de reconhecimento que uma exposição pode receber. A minha gratidão vai para as centenas de pessoas que estiveram aqui no sábado — cantando, sorrindo, aplaudindo comigo.
Ailton - A ideia de futuro nos foi anunciada, de forma geral, a partir do final do século XVIII e ao longo do século XIX. O futuro começou a ser projetado como algo fantástico. Somos culpados tanto pela esperança quanto pelo desespero.
A Revolução Industrial prometeu um mundo artificial, e veja onde chegamos: a esse abismo que hoje chamam de inteligência artificial. Antes, essa promessa parecia um brinquedo maravilhoso — que lavaria, limparia, arrumaria tudo, entregando a casa pronta. Havia até aquela imagem dos Jetsons: flutuavam, tinham robôs que limpavam a casa. A Rose, por exemplo — aquela robozinha que fazia toda a faxina. Era uma fantasia sobre o futuro que habitamos desde o século XIX.
Mesmo agora, no século XXI, seguimos vivendo numa fantasia sobre o futuro. Contudo, agora a cortina caiu. Aquela fantasia do futuro está se revelando como algo perigoso. Está se mostrando como uma força que nos separa de nosso modo natural de viver, de existir, e nos lança num lugar que costumo chamar de “abismo cognitivo” — quando não conseguimos mais experimentar com o corpo aquilo que estamos vivendo com a mente.
O corpo e a experiência mental passaram a caminhar separadamente. É por isso que me preocupam profundamente as crianças pequenas com o celular na carinha delas. Se nós, adultos, já somos capturados por essa tela, imagine uma criança, com seu espírito ainda puro, entrando em contato com esse mundo — um mundo destruído pela técnica e por fantasias como as dos Jetsons.
Agora que essa imagem de um mundo fantástico da tecnologia começa a nos ameaçar — com guerras e outros eventos dramáticos —, precisamos refletir. A Organização Mundial da Saúde já aponta que o diagnóstico mais frequente em escala planetária, tanto entre jovens quanto entre idosos, é o sofrimento mental.
Ora, antes nos preocupávamos com a fome — e promovemos revoluções para combatê-la. Depois, com a pobreza — e travamos novas revoluções. Agora, descobrimos que o que nos ameaça é o sofrimento mental. E o que faremos diante disso?
Talvez devêssemos voltar para casa. Voltar para casa, nesse contexto, seria desencanarmos dessa fantasia de uma tecnologia hiperdesenvolvida, onde um robô chamado Rose limpa toda a sujeira que produzimos. Estamos ferrando o planeta com lixo e resíduos de todos os tipos, inclusive nucleares. Na camada de ozônio, que protege o corpo da Terra da incidência de raios cósmicos, está cheio de restos de foguetes, pedaços de naves espaciais. É um pesadelo — mas um pesadelo que nós, os humanos, produzimos ao longo de 200 anos, em nome do progresso e do desenvolvimento.
Estamos drogando o solo para produzir cada vez mais. O agronegócio é um inferno: ele queima a floresta, destrói e ainda se apresenta como algo "pop". Essa história de “o agro é pop” mostra o poder da publicidade de mentir descaradamente 24 horas por dia. Está evidente: o agro envenena, degrada e mata. Como é possível chamar algo assim de “pop”? Pop é o papa.
Ailton - Bem, já tivemos três COPs que foram se encaminhando para se tornar balcões de negócios. Aquela que ocorreu nos Emirados Árabes Unidos foi um exemplo claro disso. Quem recebeu a conferência foram os xeiques do petróleo — foram eles que bancaram o evento. O documento final da conferência, em vez de propor uma transição energética efetiva, sugeriu a continuidade da exploração do petróleo até 2050, como se esse fosse um marco final para o uso de combustíveis fósseis. Somente após essa data começaria a transição energética.
Isso é comparável à guerra em Gaza: no momento em que estava matando todo mundo, o primeiro-ministro de Israel dizia para fazer um breve cessar-fogo, que duraria o fim de semana. O petróleo, até 2050, é uma Gaza global. Vamos bombardear o planeta se continuarmos tirando petróleo. E qual foi o resultado disso? Os franceses estão retirando petróleo na Guiana Francesa. No Suriname, o mesmo ocorre. E o governo brasileiro, vendo isso, sente-se "obrigado" a fazer o mesmo.
É mais ou menos o seguinte: vamos ver quem cospe mais longe. Estão brincando de cuspir. A COP, então, podia ser um concurso de cuspe, para ver quem cospe mais longe, mas ela vai ser um balcão de negócio não dos empresários, mas das megacorporações que controlam minério, água, solo e tudo que você chama de agricultura no mundo São essas corporações que organizarão a COP30. E serão elas que definirão o novo paradigma para aquilo que ainda chamamos de "meio ambiente".
Nós já víamos o conceito de "meio ambiente" como uma ideia restritiva de natureza. Há quem reivindique o ambiente inteiro. Os caras já queriam “meio”. Agora nem isso. Então, provavelmente o que vai sair dessa COP 30 vai ser uma radical restrição à ideia de cuidar. Cuidar da água, do rio, da floresta e mesmo dos outros organismos humanos.
Estamos à beira de dispensar o corpo humano do trabalho, substituindo-o por máquinas que essas mesmas corporações estão tentando nos vender. Parece que estamos indo para uma feira de tecnologia, e não para uma conferência sobre o meio ambiente.
Ailton - Olha, a Academia Brasileira de Letras me surpreendeu ao recepcionar alguém que não é um autor típico das letras. Publico há alguns anos, mas só comecei, de fato, a publicar obras literárias depois dos 60 anos, então é muito recente. Venho de outra tradição — a tradição da oralidade. Sou, essencialmente, um contador de histórias. A novidade, portanto, é que a Academia Brasileira de Letras acolheu um contador de histórias.
Acredito que estou ocupando, na Academia, uma cadeira que honra a tradição da oralidade, que, para os povos indígenas, é uma forma de honrar nossa própria ancestralidade. São histórias sem fim. São cosmovisões. Levar essas cosmovisões para um ambiente tão estruturado pelo colonialismo como é a Academia — uma instituição cuja missão é difundir a língua portuguesa, uma língua colonial, que chegou até aqui para nos “comer” é simbólico.
Propus a criação de uma plataforma chamada Língua Mãe, dedicada às línguas indígenas. A proposta foi acolhida com muita gentileza, e hoje minha cadeira representa essa plataforma Língua Mãe, voltada para a valorização das línguas indígenas na própria Academia Brasileira de Letras. Disse a eles: “Vocês podem ter a lusofonia, a divulgação da língua portuguesa; eu trago para cá uma sinfonia — a diversidade, a multiplicidade de vozes.”
Com isso, passo a atuar intensamente contra a monocultura: a monocultura das ideias, das línguas e do próprio mundo. Estou sempre reivindicando outro mundo. Acredito que um mundo verdadeiro precisa ser capaz de produzir efeitos em todos nós. Isso dá sentido à possibilidade de vivermos outros mundos, de alternarmos experiências.
Não precisamos aceitar essa ideia chapada de um planeta disputado à bala por Estados Unidos, Rússia ou Europa — porque isso empobrece nosso horizonte enquanto humanidade. Transforma todos em reféns do capitalismo, do consumismo, desse besteirol em que se transformou a chamada cultura global.
O querido geógrafo Milton Santos nos alertava sobre as diferentes globalizações. Há exatos 40 anos, foi anunciado o evento da globalização. Muitas pessoas pensaram que aquilo era apenas um filme de Hollywood, uma superprodução. Não entenderam que era, na verdade, uma injeção letal — destinada a devorar aquilo que somos como humanidade: essa ideia plural de povos e culturas diferentes habitando o mundo de maneiras diversas. Globalizar é pasteurizar.
Nunca me esqueço desse alerta de Milton Santos: a globalização iria superconcentrar a riqueza mundial e aprofundar a pobreza. Para aquilo que chamamos de meio ambiente, isso representa a perda total da nossa capacidade de cuidar da Terra. E cuidar do planeta é o que me interessa.
Abraço, lenço e resistência
Aqui, um bastidor. Após o encerramento da entrevista, o fotógrafo do O POVO, Fábio Lima, se aproximou de Ailton Krenak e deu de presente a ele uma réplica de uma kufiya, lenço que simboliza a resistência palestina. O item já acompanhava Fábio em outras oportunidades. "Uso o lenço comigo como forma de protesto e para chamar atenção para o genocídio, desde o início do massacre de crianças em Gaza. Após perceber na entrevista que ele falou por várias vezes do assunto e com sensibilidade ao povo massacrado da Palestina, tive a ideia de lhe dar o meu de presente", afirma. Segundo o profissional, além de um gesto de carinho e agradecimento, entendeu que, ao usá-lo, Krenak daria mais visibilidade à causa palestina, pela dimensão que ocupa no cenário nacional e mundial.
Hiromi Nagakura até a Amazônia com Ailton Krenak