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A "solidão" compartilhada da literatura latino-americana
Vida & Arte

A "solidão" compartilhada da literatura latino-americana

A língua em comum e a familiaridade de romances de países latinos revelam um passado idêntico. Somos irmãos pela exploração europeia, escravização e ditaduras
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ParaTodosVerem: Gabriel Garcia Marques se encaminha para discursar no prêmio Nobel de Literatura. Veste branco e segura um livro. Imagem em preto e branco (Foto: Harry Ransom Center/Disponível na Universidade do Texas)
Foto: Harry Ransom Center/Disponível na Universidade do Texas ParaTodosVerem: Gabriel Garcia Marques se encaminha para discursar no prêmio Nobel de Literatura. Veste branco e segura um livro. Imagem em preto e branco

Germán Rodríguez Páez, 58 anos, exaltou a singularidade da Colômbia, país onde nasceu e em cuja capital, Bogotá, reside. Os cidadãos amáveis, diz ele, fazem sorrindo tudo o que se propõem, mesmo que cercados de guerras eternas por domínio de territórios e do terror ao narcotráfico. "La esencia de violencia en Colombia es única", comenta.

As frases dele são parecidas com as comumente ouvidas sobre o Brasil. Um povo caloroso e feliz, mesmo rodeado por tragédias. Um povo que fala uma língua cantada, arrastada e manhosa. Que come comida "de verdade" - arroz, feijão, carne e frutas. Além do álcool, claro, que esquenta por dentro.

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Pessoas que andam em ruas nas quais circulam gente de todas as raças, gêneros, cores e cheiros, em um verdadeiro arco-íris humano; que vivem em cidades construídas em torno de praças com igrejas pintadas de ouro e cercadas de plantas verdes e de grandes folhas. Locais com "elementos invasores": palavras com 'y' e 'w' demais, carros asiáticos, celulares americanos, roupas europeias. Cidades vistas como violentas ou traiçoeiras, como Bogotá (Colômbia), ou o Rio de Janeiro (Brasil), ou Caracas (Venezuela).

Esta descrição se aplica a boa parte dos países latino-americanos - cenários de nossos livros. Nas páginas, revelamos: somos uma profusão do que estava e do que chegou.

Cada nação latina é única, com elementos culturais reconhecíveis ao olhar. Mas, há algo que nos une. Algo que faz jovens leitores se identificarem com obras quase centenárias escritas a milhares de quilômetros de distância.

Livros que não necessariamente falam de coisas "realistas", mas de bebês com rabo de porco, pactos no sertão e contato com espíritos. "É muito fácil você diferenciar a escrita de um autor latino", disse a estudante de jornalismo Raiza Souza, 21 anos, em um quase super-poder: o de se ver no país vizinho. De onde vem isso?

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A resposta, para os especialistas ouvidos pela reportagem, pode estar justamente no passado, na formação da América, no alicerce das cidades. A magia que aproxima a literatura da América Latina estaria nas dores que carregamos, nas pessoas que perdemos e em tudo que nos foi tirado. Os livros seriam o contragolpe do nosso povo: "respondemos com vida" aos séculos de exploração.

Literatura latino-americana: leitores ouvidos pelo O POVO

Os leitores ouvidos pelo O POVO para esta reportagem pegam livros "quando dá", antes ou depois do trabalho. Alguns citaram o trajeto, outros o horário pós-expediente. Ler, para eles, é um respiro e um escape.

Foram contatadas cinco pessoas, para além dos escritores e especialistas ouvidos. Os leitores são dos seguintes países da América Latina: Brasil, Colômbia, Chile (mas residente do México), Colômbia (mas reside no Brasil) e Peru (mas reside nos Estados Unidos).

As mudanças de país, por motivos de estudo ou trabalho, provocaram choque cultural. Ainda que com aspectos semelhantes, diferenças como o contingente populacional e a economia divergem o Chile do México, por exemplo, segundo os olhos de Rocío Cruz Lathrop. Mesmo assim, ela reconheceu aspectos do país de nascença em histórias orais semelhantes, como a lenda da Llorona.

Choque enorme foi narrado por Carlos Marcelo Cuadra Rabines, que saiu do Peru para os Estados Unidos. Deparou-se com um país de classe média com alto poder de compra e com uma sociedade menos "cálida y receptiva", ainda que isso dependa do tamanho da cidade para ele. "Existen muchas limitaciones en cuanto al sistema de salud", acrescentou ainda, sobre o país do norte.

A literatura latino-americana, para os ouvidos, possibilita a percepção dos lugares em comum nos países do continente. As "texturas" destes livros, para Rocío Cruz, a permitem quase conseguir sentir cheiros em um ambiente descrito neles, por serem familiares. "O cheiro da umidade e da fumaça de cigarro", exemplifica.

O escritor e professor Sebastião Guilherme Albano, brasileiro e formado no México, considera que os elementos únicos da literatura latina estão "vinculados à ordem da história e da memória", aspectos que levam diretamente à violência. Mestre em Letras Latinoamericanas, ele considera esta uma característica "fundacional", nossa.

Neste sentido, Sandra Beltran-Pedreros, colombiana no Brasil, resumiu a literatura-latina como um grito de "liberdade". É por meio dela, diz, que questiona-se a injustiça, o preconceito, ao mesmo tempo em que valoriza-se a nossa maneira de absorver o externo.

"Narramos, cantamos, poetizamos nossa força como a resistência para sobreviver, com forte apelo na fé. Diferente aos colonizadores que narram com glória a destruição que eles geraram em outras nações".

Literatura e representatividade

Os anos 1960 e 1970 marcaram um grande sucesso e reconhecimento aos livros latinos. Muitos eram de "realismo mágico", gênero que pincela elementos fantásticos em cenários mais factíveis e é alvo de suspiros até hoje.

A jovem Raíza, brasileira, disse gostar muito do movimento por considerar "o tipo de literatura que super representa nossa localidade, onde moramos". "Super me vejo", disse.

Quase todos os entrevistados para a reportagem disseram o mesmo. Carlos Rabines, nos Estados Unidos, considera "Cem Anos de Solidão" (Gabo, 1967) um retrato fiel das famílias multigeracionais latinas. "Com seus altos e baixos, tanto em fama e fortuna, como desonra e queda", diz sobre o livro que narra dilúvios, alquimia e chuvas de flores.

Após a exploração colonial e imperialista, os países latinos compartilharam décadas de autoritarismo simultâneo. Entre 1960 e 1980, período do boom literário, explodiram ditaduras militares no Brasil, Argentina, Chile, Uruguai, Bolívia e Paraguai. Em Cuba e na Nicarágua, as revoluções foram respondidas com violências e sanções.

Ao mesmo tempo, a desigualdade reinava. Em todos os estados latinos, o nível de alfabetização era baixíssimo, o subemprego e o desemprego altos, a industrialização prematura e as moradias precárias.

Toda essa cadeia, da bota de Colombo nas areias do Caribe às crianças subnutridas do século XX e XXI, está denunciada na literatura, assim como os resquícios. Está no apego aos mortos de Isabel Allende, na distopia de Ignácio de Loyola Brandão e na pobreza do menino que vive em uma "Cabeça de Santo" (2019), de Socorro Acioli. É a nossa solidão, ali, visível.

Visível até para nossos vizinhos, nas páginas lidas nas manhãs pré-labuta. "Nas obras brasileiras do Norte e do Nordeste enxergo essa súplica das classes menos favorecidas, dos migrantes, dos nativos da terra, por condições melhores", considerou a leitora colombiana Sandra Beltran-Pedreros. É o espelho da violência compartilhada.

Esses caminhos em comum nos interligam, mas são pontos de encontro. Dali, seguimos — com cicatrizes parecidas — por vias diferentes. As dores da Colômbia são únicas, como salientou o morador Gérman no início da reportagem. As do Brasil, da Bolívia, do México, da Guatemala e de todos os demais países latinos também são.

As manifestações culturais distinguem-se de uma localidade à outra: dos tapetes peruanos, às rendas nordestinas e ao sombrero mexicano. Tudo se aparta e, ao longo dos anos, a globalização levou a algumas mudanças na literatura que, no entanto, segue como um forte grito.

"Sacrifícios fecundos": a literatura e o povo resistem

Os elementos fantásticos atormentam os moradores da fictícia Nova Jaguaruara (2017), cidade do livro homônimo de Amaurício Lopes. O escritor fortalezense cita elementos do interior do Ceará e do terror como característicos da literatura dele.

"Eu tinha sempre essa inquietação, quando assistia filmes ou lia livros de fora sentia uma uma carência: não tem uma uma história que se passa aqui no Ceará. Eu, visitando muito o interior na infância, sentia essa falta", considera. Para ele, livros como os de Stênio Gardel e Socorro Acioli "viciaram" pela identificação.

A literatura latina atual é extremamente diversa, segundo defende. Sempre foi, Amaurício se corrige, mas a influência das redes sociais aumenta não apenas o incentivo aos livros, mas a obras variadas — clássicas ou contemporâneas.

De fato, somente no recorte brasileiro, transitamos de romances regionais como o de Stênio Gardel, "A palavra que resta" a livros ambientados na Coreia do Sul, como o de Jesse Mendes. Ambos são autores cearenses. Do Sudeste, o escritor de terror gore Raphael Montes divide prateleiras com os dramas poéticos de Carla Madeira e os romances jovens de Vitor Martins.

A consciência de identidade se expandiu. Somos latinos, mas também mulheres ou homens, LGTBQIAP ou héteros; temos raça, classe social e viemos de locais específicos. Tudo isso, para o escritor e professor Sebastião Guilherme Albano formam o bolo da nossa literatura atual, marcada ao mesmo tempo pelas individualidades e pela globalização.

"São outros tipos de comunidade que vão se acentuando como políticas e vão acrescentando uma espécie de universalidade ao dado da latinidade. O idioma é a morada do ser, não tem como desviar do destino (...) mas vivemos em uma visão de mundo globalizada. Mesmo que essa globalização seja pouco equitativa, de alguma maneira temos uma espécie de contemporaneidade com as outras literaturas do mundo", disse.

A América Latina não se desprendeu das amarras. O nível de alfabetização melhorou, mas segue considerável. Só no Brasil 7% das pessoas, em 2022, não sabiam ler e/ou escrever. Os índices crescem na população negra.

O Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) estagnou-se após a pandemia e, segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), também somos afetados pelos cenários de polarização política mundial.

Apesar disso, seguimos tentando. A América Latina estuda maneiras de volatizar o crescimento econômico, investir na industrialização e em tecnologia, além de brigar por espaço geopolítico em grupos como o G20, o qual presidimos. Tudo, claro, na "marcha lenta", agarrada às dificuldades do passado.

Já a literatura permanece brilhante e deverá seguir assim. Afinal, não morre fácil o que não padeceu a "enchentes nem pragas, nem fome nem cataclismos, nem mesmo as eternas guerras, séculos após séculos", segundo Gabo.

Estante

1. "Nossa América" (1891), de José Martí

O ensaio filosófico cubano foi recomendado por Sandra Beltran-Pedreros, colombiana

2. "Santa Maria de Las Flores Negras" (2002), de Hernán Rivera Letelier

A novela histórica chilena foi recomendada por Rocío Cruz Lathrop, chilena

3. "Rebelión de Los Oficios Inútiles" (2022), de Daniel Ferreira

A ficção política colombiana foi recomendada por Germán Rodríguez Páez, colombiano

4. "Tudo é Rio" (2021), de Carla Madeira

Um dos romances mais vendidos do Brasil foi recomendado por Raiza Souza, brasileira

5. "Conversa na Catedral" (1969), de Mario Vargas Llosa

O romance peruano foi recomendado por Marcelo Cuadra Rabines, peruano

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