Em um cenário onde a velocidade das redes sociais ofusca a profundidade dos debates, a escritora e ilustradora Clarice Freire emergiu como uma voz singular na literatura. Suas "poesias visuais", uma fusão de traços delicados e versos concisos, cativaram uma audiência de mais de um milhão de seguidores, projetando-a do universo digital para o reconhecimento editorial e a admiração de crítica e do público.
Leia no O POVO | Confira mais notícias e opiniões sobre quadrinhos
Com lançamentos como "Pó de Lua" (2014), que rapidamente alcançou o prestigiado status de best-seller, e "Pó de Lua nas Noites em Claro" (2016), finalista do Prêmio Jabuti, Clarice Freire já havia consolidado a força de sua expressão artística.
Essa trajetória bem-sucedida no universo da poesia, com sua abordagem inovadora e visualmente rica, pavimentou o caminho para uma nova obra. Agora, em 2024, a autora expande seu horizonte criativo com o lançamento de seu primeiro romance: "Para Não Acabar Tão Cedo", publicado pela Editora Record.
Leia no O POVO | Confira mais notícias e opiniões sobre cinema
A narrativa é vista pelos olhos de um narrador inusitado, o próprio Tempo, que conta a jornada de Augusta, ou apenas "Guta", e sua irmã, Lia. Duas senhoras que, em um dia comum, são arremessadas para décadas no passado, em uma inversão temporal que as força a revisitar suas juventudes.
Essa reviravolta as impulsiona a uma exploração de memórias há muito adormecidas, anseios esquecidos e a complexidade intrínseca desse reencontro, com suas versões mais jovens e com a relação visceral que as une.
Clarice não perde tempo na construção do enredo, apresentando nas primeiras páginas seu singular narrador. Essa escolha confere à obra uma voz surpreendente, que transcende a perspectiva humana e mergulha nas nuances da existência com uma profundidade filosófica.
A partir desse ponto, todas as construções e as visões do narrador são moldadas pela perspectiva única dessa "entidade", o que estabelece uma voz que não apenas surpreende pela originalidade, mas fixa o leitor de forma cativante.
Pode-se dizer o mesmo sobre a introdução das protagonistas, Guta e Lia, que são rapidamente inseridas no dilema central da trama: a súbita e inesperada volta à juventude. Contudo, a genialidade da autora reside em como cada uma das irmãs reage a essa anomalia temporal de forma multifacetada.
Enquanto Augusta se vê assustada e, em um primeiro momento, acredita estar à beira de um colapso ou tendo algum tipo de surto, a irmã Lia, com uma ousadia e um espírito aventureiro aflorados, aceita aquele presente inesperado, mergulhando de cabeça na oportunidade de aproveitá-lo ao máximo, antes que ele se dissipe como um sonho.
Ao invés do clichê da viagem no tempo, Clarice coloca as personagens - as irmãs tão conflituosas em interesses - em versões mais jovens no presente. A autora se distancia do senso comum ao abordar a juventude repentina apenas através do corpo das protagonistas - conferindo energia ao fio narrativo.
Embora a revitalização física e a redescoberta da vitalidade tragam suas vantagens, e isso seja inegavelmente explorado, principalmente para a impulsiva Lia, este não é o foco da obra. O brilho e a profundidade residem em como a escritora consegue costurar, com uma sensibilidade impressionante, temas universais e complexos da vida humana: luto, maternidade, paternidade, depressão e dependência emocional.
Tudo isso se desenrolando de forma orgânica e crível ao longo de um único dia, enquanto as irmãs passeiam pelas ruas históricas de Recife. A autora faz questão de apontar que as duas mulheres não têm problemas com sua idade ou com as marcas do tempo por questões estéticas ou qualquer coisa superficial. Elas valorizam imensamente suas vidas, com suas alegrias e cicatrizes, mas, assim como muitos de nós, carregam arrependimentos, reflexões sobre as escolhas e o eterno dilema da relação com o tempo.
Recife transcende o papel de cenário e emerge como um quarto personagem. O mar de águas cálidas, as avenidas movimentadas e a Rua da União ganham vida através das linhas da autora, criando uma atmosfera vívida. Clarice é capaz de transportar o leitor para a cidade, fazendo com que quem não a conheça consiga se imaginar lá, sentindo seus aromas e ouvindo seus sons. E, para quem já tem familiaridade com a capital pernambucana, a leitura evoca uma nostalgia estranha, como se o leitor tivesse vivido as mesmas histórias e compartilhado as mesmas emoções que as irmãs.
A dinâmica intrincada entre Lia e Guta é outro ponto a ser destacado. A naturalidade da relação entre a irmã mais velha e a mais nova é palpável em cada diálogo, desde os "picos de raiva" e a preocupação de Augusta até a impulsividade e o espírito livre de Lia, que em diversas vezes se mesclam e se complementam em cena. "Para Não Acabar Tão Cedo" surpreende o leitor até seu último capítulo, com reviravoltas bem construídas e um desfecho que provoca reflexão. O romance emociona de forma natural, sem forçar sentimentalismos, e nos convida a refletir sobre nossa relação com o tempo - essa força avassaladora e, ao mesmo tempo, vagarosa.
para não acabar tão cedo