Para que colocar mais um trabalho artístico no mundo? Em uma modernidade com tantos materiais audiovisuais em produção e performances acontecendo continuamente, qual o sentido do exercício de trazer um conteúdo artístico para o mundo? É esta a pergunta que move o coreógrafo e bailarino Fauller a cada novo projeto que inicia.
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Ao lado de Wilemara Barros, a dupla toca, há 22 anos, a Cia. Dita, coletivo de artistas independentes que transita entre as linguagens do teatro, dança, performance e literatura.
Embasado nas artes cênicas, o grupo é símbolo de um teatro cearense que se debruça sobre temáticas sociais, políticas e existenciais, por meio de experiências sensoriais e imersivas para o público.
A fim de celebrar a trajetória construída e debater os rumos futuros, o grupo realiza, desde o início do mês de junho, a Mostra Repertório Cia. Dita.
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Por meio do projeto, o coletivo revisita espetáculos icônicos da dança contemporânea, com seis apresentações gratuitas e duas oficinas criativas.
Como desfecho da programação mensal, Wilemara Barros e Fauller sobem ao palco do Teatro Dragão do Mar, nos dias 21 e 22 de junho, às 19 horas, para a primeira exibição pública de "Tudo Sobre Nós Dois".
A obra traz uma reflexão sobre a criação artística e, sobretudo, sobre os pormenores da concepção criativa a dois. Além da vida nos palcos, o casal de bailarinos divide o cotidiano afetivo, e é inspirado nessa relação que o espetáculo mistura realidade e ficção em uma construção imagética provocadora.
“Em Tudo Sobre Nós Dois talvez não se conte realmente tudo. Ou talvez nós estejamos blefando, jogando com a percepção do público sobre o que seria essa 'intimidade dividida'. Assim, a utilização das máscaras é uma forma de nos proteger, criamos um alter ego para resguardar o Fauller e a Wilemara em cena”, conta o coreógrafo.
Segundo Wilemara, a ideia surgiu após Fauller rever uma série de vídeos feitos há mais de dez anos para compor um documentário sobre o cotidiano e sobre as pautas da criação da dupla.
“Esses vídeos nunca vieram a público, e talvez só venham quando estivermos velhos ou mortos. Daí surgiu a ideia de autobiografar o casal, mas logo no início vimos que mexeríamos em assuntos que não nos interessa dividir na cena. Por isso, o trabalho mistura realidade e ficção, como forma de nos resguardar. Não trabalhamos com temas, mas com questões: a nossa relação de vida e arte, a influência imagética do cinema e outros assuntos que estão nas bordas”, destaca Wilemara.
Após a exibição, os artistas promoverão uma conversa com o público, visando debater também a trajetória do coletivo, que há 22 anos foi pioneiro ao transformar o corpo em instrumento político.
Desde “Fortaleza” (2019), que analisa a tensão entre corpo individual e coletivo no contexto da violência urbana, até “CorPornô” (2019), que tece reflexões sobre o prazer e os limites do corpo em cena, a premissa nunca é a mesma.
“Quando olho para as nossas criações, penso que o mais bacana é que não repetimos uma forma de nos colocar em cena e, consequentemente, de nos colocar no mundo. Claro que existe uma recorrência sobre a nudez, mas ela nunca é repetitiva, porque o que se pode abordar através dela é um universo muito amplo e complexo”, reflete Fauller.
Para Wilemara, a escolha do que será abordado em cena responde a uma responsabilidade artístico-social-política que o grupo ocupa no cenário local.
Filha de pai operário e mãe dona de casa, Wilemara pôde encontrar seu norte na dança em um período em que a seara ainda era restrita a mulheres brancas que tinham condições de ascender aos palcos, em um contexto cultural com poucas oportunidades para quem fugisse da elite.
Com 51 anos de carreira acumulados e sendo uma das primeiras bailarinas negras no Estado a se consagrar nacionalmente na dança, Wilemara incorpora, aos princípios da Cia. Dita, o desejo de que a companhia seja uma porta de acesso para a periferia.
“Penso que todos nós que compomos a Cia. Dita — tanto bailarinos como técnicos e produtores — viemos da periferia, e sabemos como esse lugar é pulsante, como dele surgem grandes talentos que só precisam de um apoio para se desenvolver. Cada vez que uma menina negra se reconhece em uma mulher negra falando da sua história de superação e que hoje viaja o mundo através da sua arte... Isso certamente vai reverberar e impactar as experiências dessa infância e juventude nas periferias”, defende a bailarina.
Com obras que circularam por festivais como a Bienal Internacional de Dança do Ceará, o Festival Panorama (RJ), o Festival de Joinville, o MITsp (Mostra Internacional de Teatro de São Paulo), para Wilemara, contudo, o maior reconhecimento da carreira construída não reside em prêmios.
“A nossa maior conquista é a nossa liberdade artística. É poder criar um espetáculo com uma bailarina usando sapatilhas de ponta em uma estrutura de balé clássico e, em outro trabalho, colocar essa mesma bailarina em grupo, todos nus, debatendo questões que envolvem a sexualidade e o erotismo. E, para cada um desses trabalhos, manter o interesse das pessoas em ir ao teatro”, finaliza Wilemara.
Tudo Sobre Nós Dois